Entrevista com Nuno Teotónio Pereira - O Marcelismo e a oposição católica

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Nuno Teotónio Pereira e Fernando Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por Franklim Rodrigues, Ana Colaço, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 
 
Em 1966 o papa Paulo VI proclama o dia 1 de Janeiro o dia de reflexão sobre a paz em todo o mundo cristão. Em Portugal muitos católicos consideraram uma hipocrisia que num país em guerra a igreja católica silenciasse o problema.
Em 1967 o papa Paulo VI visita Portugal.
“Excelentíssimo padre
Esta nação cuja terra Vossa Santidade acaba de pisar é assim há mais de oito séculos e sempre tem vivido sob o signo de Cristo.”
(palavras de Américo Tomás)
O tema do nosso programa é hoje “O marcelismo e a oposição católica”. Como sempre temos a colaboração do professor Fernando Rosas e convidado o arquitecto Nuno Teotónio Pereira.
Fernando Rosas – Muito boa tarde, muito obrigado Nuno por ter vindo mais uma vez a este programa, agora na qualidade e testemunho do que foi a oposição católica. A minha primeira pergunta era um pouco esta. Como é que um sobrinho dum alto dignatário do regime, um dos mais altos, duma família, de alguma maneira, tão ligada ao Estado Novo como é que uma pessoa desse meio se encontra na oposição ao regime, no seu caso.
Nuno Teotónio Pereira – Bom, é depois duma caminhada bastante longa porque é claro eu fui educado com os valores da direita tradicional, católica, até monárquica, conservadora e depois fui-me libertando disso, libertando exactamente e por duas vias. A via principal foi essa exactamente a do catolicismo empenhado, queria ser um cristianismo autêntico, o mais possível, fiel, etc.
Fernando Rosas - Militante da Acção Católica?
Nuno Teotónio Pereira – Por acaso não fui propriamente da Acção Católica, mas estive noutros movimentos e acompanhei muito, tinha muitos amigos, muitos companheiros que estavam na Acção Católica e por outro lado também por via profissional, dediquei-me, trabalhei durante muitos anos na habitação social e por aí vi o que eram as falsidades do Regime, as promessas que havia, enfim, em relação a resolver o problema das barracas, dos mal alojados, etc. Aquilo andava a passo de caranguejo com muitas contradições. Portanto foi por essas duas vias que eu me fui, digamos assim, convertendo a adversário da ditadura portuguesa.
Fernando Rosas - Em que fase é que pode considerar-se que começa a sentir-se colocado num campo oposto ao do Regime? Em que período da sua vida e da história do próprio Regime?
Nuno Teotónio Pereira – Bom, houve digamos dois processos que conduziram a isso, muitos, eu e muitos outros companheiros. Um deles foi exactamente a Acção Católica, e os grupos, vários grupos que havia no âmbito da Acção Católica que tinham por lema, agora estou a citar de cor, possivelmente não são as palavras exactas: “Que o problema ver, reflectir e agir”. E as pessoas tomavam isso a sério portanto viam o que é que se passava à sua volta, no País, reflectiam, reflectiam em conjunto, era um trabalho muito colectivo, muito participado e depois agiam, depois dispunham-se a agir e portanto por essa via, com essa metodologia, de facto, houve um grande número de militantes católicos que se tornou adversário do Regime. Depois outra via foi, isso coincidiu com o Concílio Ecuménico e com o pontificado do João XXIII que de facto foram dois momentos exaltantes.
Fernando Rosas - Esse momento foi mais importante que a carta do bispo do Porto em 58?
Nuno Teotónio Pereira – Bom, a carta do bispo do Porto também ajudou muito, claro, foi importantíssima e 
Fernando Rosas - Que idade é que tinha quando o bispo do Porto divulga a carta a Salazar?
Nuno Teotónio Pereira – Que idade é que tinha? Foi em 58, tinha 36.
Fernando Rosas - Portanto já era licenciado, já era um arquitecto profissional.
Nuno Teotónio Pereira – Já, já. Com alguns projectos importantes realizados.
Fernando Rosas - Como católico como é que reagiu a essa carta?
Nuno Teotónio Pereira – Bom, com uma grande satisfação, com um grande contentamento porque foi a carta do bispo do Porto foi produzida no contexto da campanha eleitoral do Humberto Delgado e esse momento foi um momento decisivo para um grande número de católicos também. A campanha do Humberto Delgado pôs a nu, duma maneira muito manifesta, muito clara enfim os males da ditadura.
Fernando Rosas - Homens como o Alçada Baptista também nessa altura já tomam posição, o Lino Neto, mas qual foi o seu primeiro gesto público contra a ditadura?
Nuno Teotónio Pereira – Bom, creio que foram justamente os abaixo assinados durante a campanha do Humberto Delgado e na sequência dessa campanha, vivos(?) e exigidos pelo Francisco Lino Neto, foi ele o grande animador, foi ele que redigiu os textos que reuniu assinaturas, foi a Coimbra, foi ao Porto.
Fernando Rosas - Penso que está a referir-se ao célebre manifesto dos 101?
Nuno Teotónio Pereira – O 101 é mais tarde.
Fernando Rosas - É mais tarde.
Nuno Teotónio Pereira – Sim, sim. O 101 é mais tarde. No contexto diferente e com outras pessoas.
Fernando Rosas - Com outras pessoas. Mas eu queria falar não do 101. Exactamente tem razão, mas do célebre manifesto em que se denunciam os safanões a tempo.
Nuno Teotónio Pereira – Foram dois. Esse a denunciar os crimes da PIDE e o outro a denunciar o conluio entre a Igreja e o Estado.
Fernando Rosas - Portanto, no rescaldo das eleições de 1958.
Nuno Teotónio Pereira – Exactamente.
Fernando Rosas - O Nuno subscreveu outro.
Nuno Teotónio Pereira – Subscrevi e também colaborei com o Lino Neto.
Fernando Rosas - Quem era, se disso se pode falar, quem é que era o núcleo duro dos católicos que movimentavam, animavam essa movimentação nessa altura.
Nuno Teotónio Pereira – Bom, o Lino Neto, depois o grupo que formou O Tempo e o Modo, o Alçada Baptista, João Bénard da Costa, Nuno Bragança, também pessoas ligadas à Juventude Operária Católica, Manuel Bidarra, João Gomes, por aí fora. Era esse grupo que...
Fernando Rosas - De qualquer forma que antes dessa grande rotura de 58 já tinha havido alguns casos. O padre Abel Varzim. Quer dizer, já havia sobretudo a nível da Liga Operária Católica, já havia um passado de alguma contestação ao Regime. Esse passado também vos inspirou nessa altura?
Nuno Teotónio Pereira – Inspirou, claro, evidentemente, mas esses acontecimentos antes dessa época ficaram muito isolados, ficaram muito isolados. Não tiveram o apoio que deviam ter tido de grande parte dos católicos.
Fernando Rosas - Como católico e como homem, pessoa da sociedade da altura, sentiu, que tipo de reacção sentiu à sua volta quando das suas tomadas de posição. Perdeu amizades, houve zangas na família? Que reacções sentiu à sua tomada de posição?
Nuno Teotónio Pereira – Sim. Houve problemas na família, claro. Houve problemas na família, evidentemente. Inclusivamente com o meu tio Pedro Teotónio Pereira, embaixador, porque e isso foi um pouco mais tarde. Ele estava embaixador em Washington e escreveu-me uma carta a dizer que pedira ajuda aos americanos. Tinham falado num abaixo assinado católicos contra o colonialismo português e que entre os signatários estava um sobrinho do embaixador de Portugal e ele escreveu-me a pedir-me para eu, enfim, me retratar e disse que não acreditava que isso fosse verdade e que pediu-me para eu escrever uma declaração a dizer, a explicar porque é que havia esse engano e eu respondi-lhe a dizer que se eu escrevesse, se desse esclarecimentos e fundamentasse a minha posição isso ainda teria resultados piores para ele e a partir daí houve um corte de relações, enfim, bastante ...
Fernando Rosas - Antes desse corte de relações teve alguma vez oportunidade de discutir com ele, com o Pedro Teotónio Pereira, os seus pontos de vista?
Nuno Teotónio Pereira – Ah não, não tive. Não tive porque, porque ele, por um lado, era uma pessoa que estava muito no estrangeiro. Ele foi embaixador na Espanha, depois esteve aqui na presidência do Conselho. [Fernando Rosas - Estive na Presidência a partir de 48] Passou muito tempo fora e portanto não tive oportunidade e era difícil falar-se com ele. Havia uma grande diferença de idades e eu não teria, teria sido para mim naquelas circunstâncias criar uma discussão.
Fernando Rosas - E dentro da Igreja teve oportunidade de discutir dentro da Igreja, ou dentro da militância, do activismo católico, discutir os seus pontos de vista com elementos da hierarquia.
Nuno Teotónio Pereira – Sim, aí dentro da Igreja o problema que havia, as discussões que haviam, o diálogo que havia não era com pessoas que se opusessem às nossas posições. Não havia oposição, as pessoas, duma maneira geral, com quem nós contactávamos, amigos, etc. até aceitavam as nossas posições. O grande problema aí nesse diálogo era fazê-los abandonar uma atitude de complacência, de aceitação, de conformismo. Esse é que foi o grande problema. E isso criou, de facto, porque havia vazios à nossa volta. Havia grandes círculos também de católicos e havia até militantes que não nos acompanhavam e isso é que era o grande motivo das discussões.
Fernando Rosas - Como é que o Nuno Teotónio Pereira caracterizaria as relações do Estado com a Igreja nesse período nos anos, fim dos anos 50, princípio dos anos 60.
Nuno Teotónio Pereira – Bom, ao longo de todo o período da ditadura foi de total cumplicidade. Às vezes um pouco disfarçada com algumas atitudes pontuais, mas havia de facto ali uma comunhão de interesses muitíssimo estreita.
Fernando Rosas - E a rotura do bispo do Porto não mexeu de alguma maneira dentro da Igreja com essa situação.
Nuno Teotónio Pereira – Bom, dentro da hierarquia não, infelizmente. Era uma coisa que nós, que era muito dolorosa verificar é que ele foi exilado, foi compelido ao exílio e não houve nenhuma manifestação de apoio, de solidariedade para com ele, pelos colegas de episcopado. Isso foi uma coisa que nos chocou terrivelmente. 
Fernando Rosas - E da parte dos leigos?
Nuno Teotónio Pereira – Ah, isso aí houve. Isso aí houve. Houve e da parte de certos grupos de leigos houve.
Fernando Rosas - Portanto, depois dessa tomada de posição vem o papa João XXIII. Como é que vocês receberam as primeiras encíclicas do papa, o Pax in Terris, enfim, aquela.
Nuno Teotónio Pereira – Foi com grande entusiasmo, não é, um enorme entusiasmo. Até delas, essa Pax in Terris deu origem à criação da cooperativa PRAGMA onde nós nos empenhámos muito como instrumento de...
Fernando Rosas - Em que ano foi criada a PRAGMA?
Nuno Teotónio Pereira – Foi em 63, se não me engano. Em 63 foi no primeiro aniversário da Praxis in Terris e fundámos essa cooperativa justamente como instrumento de diálogo até com não crentes, com a sociedade, com os vários sectores da sociedade. Foi muito importante exactamente porque a palavra de ordem, uma das palavras de ordem do Concílio foi exactamente a abertura ao mundo que era também usada pelo João XXIII.
Fernando Rosas - Portanto a oposição católica de qualquer maneira busca espaços de expressão. Cria-se a revista O Tempo e o Modo que é dirigida pelo Alçada Baptista, a PRAGMA surgirá pouco depois, espaços de pressão legal. Porque é que isso nunca se vai traduzir na tentativa de criar um movimento político de inspiração católica ou de oposição católica?
Nuno Teotónio Pereira – Bom, houve tentativas disso, chegou a haver projectos concretos.
Fernando Rosas - Havia divergências acerca dessa questão?
Nuno Teotónio Pereira – Claro que havia divergências.
Fernando Rosas - Quais eram os pontos 
Nuno Teotónio Pereira – Aí punham-se divergências porque havia, por um lado, uma certa inclinação para criar um partido à imagem das democracias cristãs da Europa Ocidental, mas essa linha era recusada por uma grande parte dos militantes.
Fernando Rosas – Quem eram os defensores dessa ideia?
Nuno Teotónio Pereira – Olhe não posso lembrar-me bem. Eles eram minoritários, entre os activistas eram minoritários e portanto chegaram sempre, nunca tiveram eco, enfim, em relação ao conjunto dos elementos mais activos porque eram partidos de direita e portanto a maior parte de nós tínhamos posições nessa altura claramente já de esquerda.
Fernando Rosas - Já de esquerda, mas era possível criar um movimento de esquerda católica.
Nuno Teotónio Pereira – Mas fazia parte,   nós criar um movimento confeccional era uma opção errada. Nós éramos contra os partidos confeccionais portanto seria uma contradição criar um partido desses.
Fernando Rosas - E portanto digamos que isso fica esse projecto morre.
Nuno Teotónio Pereira – Morre, morre.
Fernando Rosas - E qual é a vossa reacção como grupo, como oposição católica ao início da guerra colonial a partir de 61? Isto teve importância na vossa definição?
Nuno Teotónio Pereira – Teve uma importância enorme porque isso foi mais uma situação que levou, enfim, a que nos levou ainda a acentuar o combate à ditadura. Foi exactamente a guerra colonial porque aí... Há bocado citou aí a encíclica Pax in Terris e aparecem os dias da paz celebrados no primeiro de Janeiro de cada ano, num deles até a palavra de ordem do papa, aí já era o Paulo VI, era a paz apetecível, a paz obrigatória e portanto numa situação de guerra, uma guerra injustíssima, ainda por cima, não é, isso mobilizou uma grande parte dos católicos a lutarem contra a guerra colonial em nome justamente dos princípios cristãos.
Fernando Rosas - É nessa altura que vai começar a vossa actividade clandestina, digamos assim?
Nuno Teotónio Pereira – Sim, é nessa altura, sim. É um pouco depois, é em 63, mais ou menos.
Fernando Rosas - Que formas é que ela tomou, a actividade clandestina?
Nuno Teotónio Pereira – Bom, a edição de um pequeno jornal policopiado chamado Direito à Informação.
Fernando Rosas – Direito à Informação. Quem é que o dirigia? Quem é que coordenava...
Nuno Teotónio Pereira – Bom, havia um grupo de coordenadores onde eu estava, estava a minha mulher, Maria Natália, estava o padre António Martins que depois foi mandado pelo cardeal Cerejeira estudar para França porque ele fazia isso, mandava os padres mais irrequietos mandava-os para fora e, enfim, depois também a certa altura ficou ligado a isso. Frei Bento Domingues e havia vários, havia um grupo. Olhe também posso citar a Maria Vitória Vaz Pato, a Ana Vicente, que é bastante conhecida. Enfim, isso era o grupo que...
Fernando Rosas – E vocês imprimiam clandestinamente. Onde é que imprimiam?
Nuno Teotónio Pereira – Bom, imprimimos em alguns sítios e depois fixámo-nos na, imprimimos em geral em paróquias, em paróquias.
Fernando Rosas – Portanto, com a cumplicidade dos párocos. Com as máquinas deles.
Nuno Teotónio Pereira – Eram com os copiógrafos. É claro que isto nunca, aqui nunca se atingiu, digamos assim, a perfeição que nós soubemos depois que havia em Espanha, por exemplo, porque os nossos. Nós estabelecemos contactos com católicos anti-franquistas, tivemos vários e numa dessas reuniões até foi avançada pelo Tito [...] em Madrid, articulado com os católicos para o diálogo e então, por exemplo, soubemos que esses problemas em Espanha eram resolvidos, entregando à porta de um convento, de um convento de freiras, os originais e no dia seguinte estava tudo impresso.
Fernando Rosas - Era mais prático. E eram depois vocês também que os distribuíam depois. [Nuno Teotónio Pereira – Sim éramos nós que os distribuíamos.] Distribuíam pelo correio?
Nuno Teotónio Pereira – Sim, distribuíamos pelo correio, com muitos cuidados porque se fosse assim tudo metido ao mesmo tempo na caixa do correio, a PIDE tinha um serviço nos correios para vigiar a correspondência e tudo era apreendido. Arranjávamos envelopes timbrados de empresas fictícias, às vezes até conseguíamos apanhar envelopes de movimentos católicos e por aí fora.
Fernando Rosas - Mas não foi o único movimento, o único órgão que foi criado clandestinamente? O Direito à Informação.
Nuno Teotónio Pereira – Depois mais tarde, houve um chamado os Boletins Anti-Coloniais, os BAC.
Fernando Rosas – Isso já no período marcelista.
Nuno Teotónio Pereira – No período marcelista, exactamente.
Fernando Rosas - E esses BAC eram jornais mais elaborados.
Nuno Teotónio Pereira – Porque a certa altura nós percebemos que o problema crucial da sociedade portuguesa era a guerra colonial e então, enfim, empenhámo-nos mais na denúncia da guerra colonial e foi criado esse boletim anti-colonial, dirigido esse pelo Luís Moita e esse era policopiado, era numa paróquia ao pé de Mafra e, enfim, mas houve outras coisas também doutros grupos, não é, convergentes. Por exemplo, uma coisa semi-legal, essa era semi-legal que eram os Cadernos Gedoc dirigidos pelo padre Felicidade Alves que esses eram até impressos [Fernando Rosas - Estudos e Documentação] eram impressos numa tipografia e tal. Depois a tipografia foi visitada pela PIDE a partir de um certo número e depois teve que ser policopiado.
Fernando Rosas - Esses órgãos, a publicação desses jornais clandestinos foi interrompida normalmente pela acção da Polícia Política.
Nuno Teotónio Pereira – Foi esse, O Direito à Informação transformou-se nos BAC [Fernando Rosas - Exactamente nos Boletins Anti-Coloniais] e esse acabou por acção da polícia. A polícia conseguiu cinco meses antes do 25 de Abril prender toda a organização.
Fernando Rosas – Toda a organização. Mas não chegou a haver nenhum processo em tribunal por causa de...
Nuno Teotónio Pereira – Não chegou a tribunal. Estava eu, quando veio o 25 de Abril o processo estava em gestação, até já estava acabado.
Fernando Rosas - Quem eram os réus?
Nuno Teotónio Pereira – O Luís Moita, eu, esse padre de Mafra, a Maria da Conceição Moita, a Luísa Cabral que tinha cedido uma parte da casa dela para a instalação dessa acção porque nós tínhamos um centro de informação anti-colonial. Nós recolhíamos documentos, tínhamos contactos com o estrangeiro, sobretudo com o Comité Angola de Amsterdão e permutávamos informação e então recolhíamos essas informações e difundíamo-las no tal Boletim Anti-Colonial e tínhamos uma casa para isso e essa casa foi também assaltada.
Fernando Rosas - Foi também assaltada e todas essas pessoas foram presas e o Nuno também. [Nuno Teotónio Pereira – Também.] Quanto tempo é que teve preso?
Nuno Teotónio Pereira – Estivemos presos mais ou menos cinco meses até ao 25 de Abril. Fomos libertados no 25 de Abril. Mais concretamente no dia 26 à meia noite.
Fernando Rosas - À meia noite. Todos nos lembramos muito bem desse dia. Foi maltratado na polícia?
Nuno Teotónio Pereira – Fui, fui bastante torturado. Já tinha sido preso várias vezes e dei-me conta...
Fernando Rosas – Quantas vezes tinha sido preso Nuno?
Nuno Teotónio Pereira – Ou três ou quatro, já não tenho a certeza se foram três ou quatro, mas das primeiras vezes verifiquei que os católicos eram tratados com benevolência na PIDE e por isso eu até depois cheguei à conclusão de que podíamos ter aproveitado podíamos ter feito mais coisas e dessa vez fui torturado porque aí havia um problema de armamento e porque eu fui solicitado por uma pessoa amiga que estava em apuros para esconder uma mala com armas e resolvi ajudá-la e pronto e depois houve prisões e a partir daí tudo descambou e eu houve tortura mesmo a sério. Pancada, chicotadas, desmaios, a tortura do sono, etc.
Fernando Rosas - Essa questão levanta-me um problema que eu gostaria de conversar consigo. Esse grupo católico, militante, opositor do Regime e da guerra colonial teve vários níveis de empenhamento na luta contra o Regime e também várias aproximações políticas distintas às várias oposições que existiam. Qual era a relação desse campo de oposição católica com as oposições que existiam, os comunistas, os socialistas, os da extrema esquerda. Como é que vocês...
Nuno Teotónio Pereira – Por exemplo, com os comunistas ficou muito claro na campanha da CDE nas eleições de 1969. Nós aí, esse grupo todo, não digo todo, mas a maioria, a grande maioria dos activistas alinhou pela CDE.
Fernando Rosas - O Alçada Baptista, o Sousa Tavares encostaram-se à CEUD.
Nuno Teotónio Pereira – Sim, sim. Não foi na totalidade, mas a maioria, sobretudo os mais activos, mais empenhados e portanto aí trabalhávamos em conjunto, trabalhávamos em conjunto, fazíamos acções com o Partido Comunista, etc. Sempre conservando uma certa distância porque havia de facto, não é, havia posições irredutíveis em relação à [...] como sobretudo à prática comunista e depois havia também ligações com o Partido Socialista, sobretudo através dos elementos de que falou há pouco.
Fernando Rosas - Também no âmbito d’O Tempo e do Modo? Não havia essa...
Nuno Teotónio Pereira – Sim, sim. Exactamente. 
Fernando Rosas - Essa cooperação. Mas há uma parte dos católicos que se aproximam também da esquerda radical. [Nuno Teotónio Pereira – Sim, sim.] Sei lá fala-se hoje com mais clareza, hoje pode-se falar e estudar esses assuntos de ligações de elementos católicos com as próprias Brigadas Revolucionárias e com a luta armada que nessa altura se desencadeou.
Nuno Teotónio Pereira – Exactamente.
Fernando Rosas - Isso passou-se, efectivamente?
Nuno Teotónio Pereira – Passou-se, passou-se, passou-se.
Fernando Rosas - Que apoio é que prestavam à luta armada.
Nuno Teotónio Pereira – Era apoio logístico, sobretudo apoio logístico.
Fernando Rosas - E foi por isso que foram presos nessa fase final do Regime?
Nuno Teotónio Pereira – Não foi por isso. Por acaso essa tal mala com armamento não era das Brigadas Revolucionárias, era da LUAR. Por acaso era da LUAR, isso foi uma coisa casual, pronto, aconteceu assim.
 “A oposição católica ao Regime marcelista” foi o tema de hoje. Tema que pela sua importância continua na próxima semana ainda com as participações de Fernando Rosas e Nuno Teotónio Pereira.
Fizeram este programa Franklin Rodrigues, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

(Programa gravado da Antena 2 no dia 8 de Maio de 1998)

2ª Parte
1973, Janeiro. Por decisão do Conselho de Ministros, são demitidos os doze funcionários públicos que tinham participado na vigília organizada na Capela do Rato. Esta medida repressiva origina o envio ao Presidente do Conselho de um abaixo assinado de protesto subscrito por mais de 400 personalidades das mais diversas áreas de actividade. Na Assembleia Nacional, o deputado Miller Guerra, da ala liberal, defende os participantes dessa vigília.
Casal-Ribeiro – Perguntava a Vossa Excelência de realmente achava bem que se discutisse a presença de Portugal no Ultramar.
Miller Guerra - Ora aí está uma pergunta objectiva e concreta e que eu respondo também objectivamente e concretamente. Acho sim senhor. Não só na igreja, mas como qualquer noutra parte.
Casal-Ribeiro - Então não preciso de mais nenhuma resposta de Vossa Excia. Está realmente, politicamente definido para mim, duma vez para sempre.
Miller Guerra - Ainda bem, senhor Casal-Ribeiro, ainda bem senhor almirante, ainda bem senhor almirante.
Um dos organizadores da ocupação da Capela do Rato foi o arquitecto Nuno Teotónio Pereira, o nosso convidado de hoje. Terminamos assim o tema iniciado na semana passada. O marcelismo e a oposição católica. Como sempre contamos com a cooperação do professor Fernando Rosas.
Fernando Rosas - O Nuno acha que vocês enquanto opositores católicos constituíram uma minoria isolada da opinião pública católica ou representaram a consciência católica genuína do país? Enfim, o que é que pensa disso, o que é que pensa da vossa posição enquanto católicos face à consciência católica do país.
Nuno Teotónio Pereira – Bem, nós sempre nos sentimos como uma minoria, como uma minoria. Sentimos um certo isolamento dentro da Igreja, embora houvesse enfim, de uma forma crescente, íamos recebendo mais apoios, até de padres e tudo, mas sempre nos sentimos como uma minoria, de facto.
Fernando Rosas - Acha que a Igreja católica portuguesa devia fazer alguma coisa semelhante à que fez a espanhola, recentemente, que pediu desculpa pela sua colaboração com o franquismo.
Nuno Teotónio Pereira - Desculpas públicas. Eu acho que, acho que sim, acho que sim, sobretudo no que respeita à guerra colonial, sobretudo no que diz respeito à guerra colonial. Em relação, enfim, àquela ligação muito forte, sempre à ditadura foi um facto, mas eu aí penso que pode haver algumas razões históricas que tenham justificado isso. As perseguições que houve até depois da República, etc. E é claro em relação à realidade da guerra colonial que demorou treze anos, eu aí penso que a Igreja católica portuguesa tinha que fazer o acto público de desculpa, sem dúvida nenhuma.
Fernando Rosas - Como é que o cardeal Cerejeira lidava com essa crescente, chamemo-lhes assim insubordinação católica, mesmo por parte de padres, já para não falar dos leigos.
Nuno Teotónio Pereira - Bom, ele tinha um grande ascendente sobre as pessoas, sobretudo sobre os padres e também sobre os leigos. Tinha um grande ascendente, por exemplo, alguns de nós foram falar com ele duas ou três vezes na fase inicial, só na fase inicial. [Fernando Rosas - O Nuno também foi?] Depois desistimos de falar com ele. Na fase inicial ainda fomos. [Fernando Rosas - O Nuno também participou nalguma dessas...] Também, duas ou três vezes e a seguir às eleições do Delgado, justamente. E ele tomava, era uma táctica que ele tinha. Ele falava todo o tempo, falava todo o tempo, era um grande conversador, falava todo o tempo, quase que não deixava a gente pôr, explicar as nossas posições. Sempre sorridente e uma dessas vezes até nos avisou, aconselhou-nos. Vocês têm as vossas vidas, a vossa família porque é que se estão a meter nessas coisas. Sempre com uma palavra de prudência na boca. A prudência que era a grande virtude. A prudência.
Fernando Rosas - Portanto ele não tomava uma oposição de hostilização aberta das vossas posições.
Nuno Teotónio Pereira - Não, não, não. Não tomava, não.
Fernando Rosas - E como é que ele lidava com os padres que eram, com os padres, em particular, que eram perseguidos politicamente. Havia perseguições paralelas da Igreja aos padres que eram objecto...
Nuno Teotónio Pereira - Sim, havia dentro daquilo que o Salazar entendia como a União Nacional que era um pacto não escrito, mas implícito entre a Igreja e o Estado em que a Igreja se responsabilizava por tomar conta de todo o rebanho, por manter na ordem o seu rebanho e de facto o cardeal Cerejeira fazia isso, fazia por manter na ordem o rebanho e em relação aos padres mais irrequietos ou recalcitrantes ou afastava-os ou mandava-os embora ou deixava-os isolados como no caso do padre Abel Varzim que foi demitido de vários cargos que tinha. Era professor no Instituto de Serviço Social e era pároco da Encarnação e assistente da Acção Católica, foi demitido de tudo isso na altura em que o Estado resolveu, impõe silenciá-lo.
Fernando Rosas - Portanto acha que houve pressão política do Estado para obrigar a Igreja a tomar medidas em relação ao seus padres.
Nuno Teotónio Pereira – Havia, havia. Evidentemente.
Fernando Rosas - Em relação ao padre Felicidade Alves isso foi mesmo levado até um pouco mais adiante. Essas, digamos, essas medidas que a Igreja tomou. Ele foi mesmo afastado da paróquia e não sei mesmo se não terá sido afastado da própria Igreja.
Nuno Teotónio Pereira - Sim, ele foi, como é que se diz, não me estou a lembrar do termo. Foi-lhe posta [Fernando Rosas - Excomunhão?] Não, excomunhão não, mas foi destituído de todos os cargos, foi afastado das responsabilidades pastorais e numa situação já muito adiantada em que aí o que estava em causa era a denúncia da guerra colonial e de facto a questão da guerra colonial radicalizou posições dos católicos e também da repressão.
Fernando Rosas - Há no entanto algumas posições da Igreja colonial em dissonância da Igreja, da Igreja mesmo africana, digamos assim, da Igreja em África.
Nuno Teotónio Pereira – Mas da Igreja representada por quem? Pela hierarquia? [Fernando Rosas - Pelos bispos] Há sim, pelo bispo da Beira, por exemplo. Sem dúvida e mais tarde pelo bispo de Nampula.
Fernando Rosas – Tinham conhecimento dessas posições cá do bispo da Beira e de Nampula?
Nuno Teotónio Pereira - Tínhamos, tínhamos. Eu, o bispo da Beira nunca falei com ele porque entretanto ele já tinha morrido, na altura mais adiantada, mas tínhamos contactos com o bispo de Nampula, contactos quando vinha a Lisboa.
Fernando Rosas – E com os padres do MPLA que estavam cá refugiados...
Nuno Teotónio Pereira – Ah sim, esses tiveram um papel muito importante para a nossa tomada de consciência em relação à guerra.
Fernando Rosas - Como é que isso aconteceu?
Nuno Teotónio Pereira - Porque houve uma leva de prisões de padres em Angola, na sequência da   guerra da insurreição do 4 de Fevereiro e então eles vieram deportados para cá. Foram presos, vieram deportados, foram colocados, foram dispersos, colocados...
Fernando Rosas - O Joaquim Pinto de Andrade.
Nuno Teotónio Pereira - O Joaquim Pinto de Andrade, o actual cardeal de Luanda, Alexandre de Nascimento, o actual arcebispo de Lubango, Franklin, Franklin Costa enfim, era a fina flor do clero angolano. Professores do seminário e então foram colocados aqui em casas religiosas dispersas pelo país com obrigação de se apresentarem à PIDE e de certa maneira sob a vigilância dos superiores dessas casas religiosas e então nós tínhamos contactos com eles. Fomos alertados para esse acontecimento que não vem nos jornais, evidentemente, não vem nos jornais, mas tivemos conhecimento e então tínhamos contactos com eles.
Fernando Rosas - Podiam visitá-los?
Nuno Teotónio Pereira - Podíamos visitá-los, exactamente, e isso contribuiu muito, pela nossa parte para a tomada de consciência porque vimos que a aspiração à independência era uma aspiração muito autêntica, muito profunda. Não eram coisas de propaganda política e foi extremamente importante.
Fernando Rosas - Na sua opinião há alguma mudança sensível de atitude quando o cardeal Cerejeira renuncia e vem o novo cardeal António Ribeiro?
Nuno Teotónio Pereira - Eu penso que não houve nenhuma mudança importante. Penso que não, penso que não.
Fernando Rosas - Tinha contactos com o novo cardeal?
Nuno Teotónio Pereira - Sim, alguns, não muitos mas alguns. Ele foi assistente da JUC, por exemplo. Eu não era da JUC, mas fui a umas conferências, uma vez ou outra, encontrei-o e, de certa maneira, foi uma decepção porque podia-se pensar que ele introduziria alguma alteração, mas não introduziu.
Fernando Rosas - Maior prudência, talvez. Há um certo distanciamento aparente do Regime nessa altura ou não.
Nuno Teotónio Pereira - Sim, talvez. Um certo distanciamento, mas muito relativo, claro. Não havia, digamos, aquela fraternidade, aquele à vontade que era característico das relações entre o cardeal Cerejeira e o Salazar.
Fernando Rosas - O novo cardeal toma aliás uma posição, como é que caracteriza a posição que ele toma na questão da Capela do Rato em que o Nuno também participou.
Nuno Teotónio Pereira - Bom, acho que ele tomou uma posição de certa maneira de condenação daquilo que se passou na Capela do Rato porque ele destituiu o padre Alberto.
Fernando Rosas - Condenação da acção da polícia ou condenação da vossa atitude?
Nuno Teotónio Pereira - Da nossa acção.
Fernando Rosas - Quer lembrar um pouco aos nossos ouvintes o que é que se passou nesse dia 1 de Janeiro, nessa... [Nuno Teotónio Pereira - No dia Mundial da Paz] No dia Mundial da Paz.
Nuno Teotónio Pereira - Dia Mundial de Acção pela Paz. Foi exactamente com essa palavra de ordem que eu há pouco disse do Paulo VI, “a paz é possível, a paz é obrigatória” e então organizámos uma vigília para celebrar essa acção do dia 1 com uns dias de antecedência. [Fernando Rosas - Estamos no ano de 1972] Exactamente. Dois anos antes tinha-se feito um coisa semelhante na igreja de S. Domingos.
Fernando Rosas - Sem incidentes?
Nuno Teotónio Pereira - Sem incidentes. É curioso porque houve a missa da meia noite celebrada pelo cardeal Cerejeira e o grupo foi ter com ele à saída, quando ele saía da igreja fomos ter com ele e anunciámos que íamos ficar ali toda a noite em oração pela paz e ele não objectou, não opôs resistência. Encarregou o pároco de nos acompanhar, para, penso, nos controlar, etc. E, de facto, o pároco esteve toda a noite a vociferar, interrompia o que nós dizíamos, protestava, etc.
Fernando Rosas - Em 70, portanto.
Nuno Teotónio Pereira – De 69 para 70.
Fernando Rosas - Mas já teve um cariz claro de oposição à guerra.
Nuno Teotónio Pereira - Sim. Houve testemunhos de pessoas que tinham estado nas colónias a combater e tudo isso. Um deles foi o de Manuel Lopes, por exemplo, da CGTP, estava mobilizado e portanto já com concretamente. O que não houve foi, a polícia resolveu não reprimir. [Fernando Rosas - Não houve greve da fome da vossa parte, nem houve...] Não, não, não houve. Foi só aquela noite, não é. [Fernando Rosas - Nisso mudou relativamente ao tipo de acção dois anos depois.] Sim, sim. Exactamente.
Fernando Rosas - Portanto em 73...
Nuno Teotónio Pereira - Foi mais ousada. De 72 para 73 foi muito mais ousada porque foi uns dias antes.
Fernando Rosas - Quais eram os vossos propósitos?
Nuno Teotónio Pereira - Dois dias antes e depois declarou-se aberta, a Capela declarou-se aberta para a discussão com toda a gente que quisesse discutir o problema da guerra colonial. Portanto isso foi uma coisa muito mais ousada e que durou dois dias, se não me engano, não é. Depois, ao fim do segundo dia, lá apareceu a polícia com os cães a ladrar e entrou na Capela, arrastou as pessoas para a esquadra do Rato que era ali mesmo ao lado e depois houve uma triagem. Fomos para o Governo Civil, depois no Governo Civil passámos lá a meia noite. Houve uma triagem aí, foram quinze para Caxias. Os considerados os cabecilhas da acção. Estivemos lá quinze dias, mais ou menos. Quer dizer, uns estiveram menos, outros estiveram mais, foram só quinze dias. Não houve maus tratos.
Fernando Rosas - Na sequência disso, aqueles que eram funcionários públicos foram objecto de demissão.
Nuno Teotónio Pereira - Exactamente. Foi o professor Pereira de Moura, do ISE, e mais o Fonseca Meneres. Depois constituíram advogados, fizeram um recurso em relação a essa demissão, mas não obtiveram nenhum resultado prático.
Fernando Rosas - Essa jornada na Capela do Rato nos primeiros dias de Janeiro de 73, de 72 para 73, foi, esteve ligada ao rebentamento de petardos que anunciavam, em papéis, a realização...
Nuno Teotónio Pereira - Exactamente. Aí para essa acção houve uma acção conjugada com as Brigadas Revolucionárias que eram portanto especialistas em explosivos e coisas desse género e eles então encarregaram-se de distribuir panfletos a anunciar essa acção na Capela do Rato e esses panfletos eram distribuídos através dos petardos, duns pequenos explosivos que faziam rebentar um pacote e os manifestos, os papéis espalhavam-se na rua.
Fernando Rosas - Vocês tinham consciência de que a polícia podia intervir na Capela?
Nuno Teotónio Pereira - Ah sim, tínhamos consciência disso. Até dávamos isso quase como certo.
Fernando Rosas - Portanto era uma acção de claro desafio ao poder que estava estabelecido. [Nuno Teotónio Pereira - Claro, claro.] E o cardeal como é que reagiu a isso?
Nuno Teotónio Pereira - Bom, ele emitiu um comunicado a condenar a intervenção das forças policiais, sobretudo por terem entrado na Capela, mas por outro lado também condenava a acção dos militantes que tinham ocupado a igreja para fins que não eram fins religiosos, digamos assim. E, enfim, esse comunicado é perfeitamente pacífico, quer dizer, uma condenação para qualquer dos lados. Parece-me que seria natural, mas o que considerámos nada pacífico foi ter afastado o padre Alberto Neto de responsável pela Capela do Rato, até porque ele nem sequer estava lá, ele estava doente e portanto ele não estava lá e portanto essa retaliação, tomámos isso como de facto castigo que foi imposto ao padre Alberto Neto para dar satisfação ao Governo, de que tinha punido de alguma maneira aquela acção.
Fernando Rosas - Também um pouco antes disso a célebre recepção do papa aos dirigentes dos Movimentos de Libertação que provoca uma violentíssima reacção por parte do Governo de Lisboa. Tem ideia de como é que a hierarquia em Portugal sentiu esse episódio?
Nuno Teotónio Pereira - Não, não me lembro. Não me lembro. Até nem me lembro do que é que o jornal “Novidades” que era o jornal da Igreja como é que noticiou esse acontecimento. Lembro-me do “Diário de Notícias” falar nisso porque isso não foi censurado, foi objecto de notícias e depois houve protestos do Governo português, etc. e aquilo acabou por uma declaração do Vaticano dizendo que, o Vaticano também com a sua duplicidade tradicional, dizendo que afinal que esses dirigentes nacionalistas tinham sido, tinham tido um encontro quase casual com o papa num corredor do Vaticano. Uma coisa deste género. E essa explicação para satisfazer o Governo português. Tinha sido uma coisa casual num corredor, quando não foi nada. Foi uma recepção, preparada com antecedência, combinada por uma militante italiana, Marcela Guizenti, que se encarregou, que se propôs conseguir essa audiência.
Fernando Rosas - Que ligações internacionais é que o vosso movimento, o vosso grupo, as pessoas que formavam esse espaço de intervenção católica, que ligações internacionais é que tinham com grupos congéneres?
Nuno Teotónio Pereira - Bom, tivemos mais com os espanhóis de Madrid, agrupados à volta dos “Coelliares del Leal” que era uma revista muito semelhante ao “Tempo e o Modo” e depois também com esse comité de Amsterdão que desenvolveu uma luta muita activa contra o colonialismo português, também com grupos belgas, alguns franceses e lembro-me, por exemplo, também duma viagem que fizemos para contactos em Itália a convite da Federação Sindical Católica Italiana, estivemos em contacto com os sindicatos. Foi o Vítor Wengorovios que organizou essa deslocação. Portanto esses contactos iam-se alargando e não havia de facto contactos, não tivemos contactos, pelo menos o nosso grupo mais activo dirigidos para os dirigentes das democracias cristãs.
Fernando Rosas - E com o Vaticano?
Nuno Teotónio Pereira - Com o Vaticano creio que não houve, não houve. Entretanto, o João XXIII tinha morrido já há uns anos. Não houve.
Fernando Rosas - E acha que os católicos, os chamados católicos progressistas espanhóis tinham mais liberdade de movimento em Espanha do que vocês cá nessa altura?
Nuno Teotónio Pereira - Sim, eu creio que eles tinham mais porque não havia o problema da guerra colonial que aqui foi muito responsável não só pela nossa radicalização como também pelo aumento da repressão.
Fernando Rosas - Quem eram os vossos autores em termos do discurso católico renovador? Quem eram os vossos autores, quais eram as vossas leituras? A vossa inspiração?
Nuno Teotónio Pereira - Agora já tenho dificuldade em dizer-lhe isso, em dizer-lhe nomes. Mas eram sobretudo franceses. [Fernando Rosas - Maritain?] Como sabe Maritain, justamente, pois o Maritain, depois também um outro brasileiro que eu não me lembro já do nome que era já um pouco a adivinhar o que seria depois a teologia da libertação, não é. [Fernando Rosas - Havia o exemplo francês dos padres operários também.] Padres operários, exactamente. Eu lembro-me de uma vez que o Francisco Lino Neto foi a Paris e esteve em contacto com padres operários, participou em reuniões, etc. Padres operários que, como sabe, depois foram dissolvidos.
Fernando Rosas - Vocês tinham aqui ligações com os sindicatos, o vosso grupo de intervenção? Com o movimento sindical?
Nuno Teotónio Pereira - Havia, havia pessoas do nosso grupo. [Fernando Rosas - Porque a LOC manteve-se sempre como um sector muito irrequieto da Acção Católica] Quem, quem? [Fernando Rosas – A LOC] Sim, sim, sim. Havia elementos da LOC ligados ao que foi depois a CGTP, ligados à Intersindical.
Fernando Rosas - Como é que os católicos progressistas se relacionaram e viram o surgimento da ala liberal do marcelismo.
Nuno Teotónio Pereira - Bom, nós, digamos assim, em conjunto vimos o aparecimento do Marcelo Caetano como sucessor do Salazar com alguma expectativa, com uma expectativa até benevolente, mas passado pouco tempo, posso dizer que a maioria de nós já tinha perdido essa expectativa, mas houve alguns elementos que apostaram, apostaram de facto numa renovação do Regime. Posso falar no Alçada Baptista, por exemplo, e sobretudo no José Pedro Pinto Leite que era uma pessoa muito marcada porque tinha sido um estudante de direito do Marcelo Caetano e muito marcado pelo Marcelo Caetano e esse, portanto, afirmou-se muito convicto dessa posição e depois também tínhamos ligações com o Sá Carneiro e com outros elementos que formaram a ala liberal, com o Miller Guerra, por exemplo, também, mas a maior parte, sobretudo os mais activos rapidamente se desencantaram de tal renovação do Marcelo Caetano e eu lembro-me de uma vez que encontrei o, encontrei por acaso na rua o Sá Carneiro. Ele quando vinha a Lisboa instalava-se no hotel Tivoli, no hotel Tivoli Jardim que é um pouco por detrás, e encontrei-o na avenida da Liberdade e ele disse: - “Acabou-se. O Regime não tem emenda. Vou dizer isso, amanhã ou coisa assim. Vou anunciar isso.”
“O marcelismo e a oposição católica” contou com as colaborações de Nuno Teotónio Pereira e Fernando Rosas.
Fizeram este programa Ana Colaço, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

(Programa gravado da Antena 2 no dia 15 de Maio de 1998)
Transcrição: Ireneu Batista