Entrevista com Fernando Rosas - O Marcelismo e as oposições: Extrema esquerda

 ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Fernando Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por Armando Pinho, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 
18 de Agosto de 1966. Antes do alvorecer, quase um milhão de jovens estudantes, vindos de todas as partes da China, começaram a reunir-se na enorme praça de Tien Amen, em Pequim. Como componentes da Guarda Vermelha de Mao Tse Tung iriam servir de tropas de choque, num dos movimentos mais intrigantes e de maiores consequências na história da China moderna, a Grande Revolução Cultural.
1968, manifestações de massas e gigantescos dispositivos policiais, bandeiras vermelhas e negras alteram a fisionomia das grandes cidades do ocidente. Em Maio, os movimentos de protesto alastram. Estados Unidos, Alemanha e Itália. Maio de 68. A França está à beira de uma revolução.
Em Portugal estes acontecimentos influenciam a juventude. A Revolução Cultural Chinesa, a revolta estudantil em França estão na base da explosão de movimentos de extrema esquerda. O marcelismo e as oposições termina hoje com Fernando Rosas a falar-nos dos movimentos de extrema esquerda surgidos nos anos 60 e 70.
E vamos hoje falar de marcelismo e as oposições, desta vez para falarmos da explosão da extrema esquerda. Connosco está o professor Fernando Rosas que hoje não faz perguntas, só responde. Fernando Rosas a explosão de extrema esquerda, podemos situá-la em que anos? 60-70?
Fernando Rosas - A primeira cisão da extrema esquerda em Portugal dá-se sob a influência do dissídio sino-soviético e é uma cisão dentro do Partido Comunista operada no ano de 1963 por Francisco Martins Rodrigues e depois por um grupo que vai fundar o primeiro Comité Marxista-Leninista Português e a Frente de Acção Popular. É um grupo que no entanto que é praticamente desmantelado pouco tempo depois, em 65-66. É desmantelado e são presos os seus principais responsáveis, muitos deles só sairão da cadeia após o 25 de Abril. Um fenómeno sociológico e culturalmente mais ligado aquilo que se costuma identificar com a extrema esquerda dá-se como clara influência do Maio de 68 em França e do conjunto do ‘cocktail’ político e cultural do mundo da época, ou seja, a Revolução Cultural na China, a luta contra o Vietname, contra a guerra do Vietname, a oposição e enfim a indignação com a invasão da Checoslováquia pelas tropas da União Soviética, pelo Pacto de Varsóvia e as tropas da União Soviética. É desse ‘cocktail’ cultural com o qual o Maio de 68 também está de alguma maneira relacionado que vai sair em Portugal a extrema esquerda e nas condições também particulares do marcelismo no nosso país. Portanto eu diria que há circunstâncias externas e internas.
Locutora - Fernando Rosas como é que foi o seu percurso político. Portanto, o seu ambiente familiar era de pessoas de esquerda?
Fernando Rosas - Sim, da parte da minha mãe era uma família republicana, anti-fascista, sobretudo da parte do meu avô que era um velho republicano que teve um longo percurso de luta contra a ditadura, mas as gerações mais novas começaram a aproximar-se do Partido Comunista. Eu próprio fui militante do Partido Comunista e estive próximo politicamente do Partido Comunista até praticamente 1968, altura em que me começo realmente a afastar do PCP por influência, sou um caso típico de um afastamento do Partido Comunista Português por influência conjunta do Maio de 68 em França e de uma coisa que me impressionou muito na altura que foi de facto a invasão da Checoslováquia pela União Soviética e a partir daí começámos, eu, outros jovens da minha geração à procura de outros caminhos que foram dar, no nosso caso também, à extrema esquerda.
Locutora - Portanto aí vamos chegar à extrema esquerda a vários partidos onde na altura...
Fernando Rosas - A explosão da extrema esquerda em Portugal dá-se do ponto de vista das condições internas em grande parte com a primeira grande frustração da experiência marcelista. Marcelo Caetano tinha suscitado algumas, mesmo para as pessoas de esquerda e de esquerda até radical, havia a ideia de que alguma coisa poderia mudar com a mudança de chefe do governo, há as promessas eleitorais de 69, o que existia já de extrema esquerda, de esquerda radical estão contra a participação nas eleições. De alguma maneira não participam nessas eleições. Quem fica de fora do concurso eleitoral em 69 são a União de Estudantes Marxistas-Leninistas que já eram um pequeno grupo ligado ao PCP-ML, são a EDE, a Esquerda Democrática Estudantil onde eu próprio participava e alguns grupos de jovens operários, aqui na região de Lisboa, que entendem que aquilo não vai resultar e de facto a frustração com as eleições, com o resultado eleitoral e com o que se passa nas eleições de 69, essa frustração, penso eu, ajudava aquele clima de expectativa em relação à mudança. Tudo isso vai criar um clima favorável, também interno, às explosão da extrema esquerda que realmente se verifica a partir de, exactamente, fins de 60 princípios de 70 e então temos o aparecimento do MRPP no qual eu me, do qual fui um dos fundadores, em 1970, mas de muitas outras, de muitos outros grupos que se poderiam agrupar da seguinte maneira. Há uma família de grupos vários, digamos, de referência marxista-leninista ainda que um com uma particular referência de maoismo, mimética até, ao maoismo e às exterioridades da Revolução Cultural que era o MRPP, depois há um pequeno campo, pouco influente nessa altura, trotskista, que começa a surgir, a Toupeira Vermelha e os grupos que mais tarde e o grupo que mais tarde irá dar a Liga Comunista em Portugal ligada à IV Internacional e uma terceira família que são os grupos que se viram directamente para a acção armada, o Partido Revolucionário do Proletariado - Brigadas Revolucionárias, portanto as BR, as Brigadas Revolucionárias, a LUAR, a Liga Unitária de Acção Revolucionária e o próprio Partido Comunista para não ficar atrás, ou seja, com problemas de ultrapassagem pela esquerda, penso eu nessa altura, lança também a acção Revolucionária Armada. Portanto, eu diria que temos a família marxista-leninista e maoista, temos a família trotskista e temos os grupos de acção armada. Esses são os três tipos de grupos que vão surgir nesta nova conjuntura.
Locutora - Portanto, com o papel, teve com certeza, o papel importante na luta estudantil. Portanto, o Fernando Rosas era universitário nessa altura. A extrema esquerda estava mais ligada aos estudantes ou estava, aproximava-se da classe operária?
Fernando Rosas - Sociologicamente a extrema esquerda é um grupo tipicamente radical, ou seja, é um grupo geracionalmente de gente nova, sociologicamente de gente ligada aos estudantes universitários e também liceais, mas sobretudo aos estudantes universitários e ao activismo académico universitário e também a outros jovens intelectuais, jovens licenciados, jornalistas. Portanto, é um sector que anda muito à volta de grupos da pequena burguesia lisboeta, sectores de intelectualidade jovem, jovens mobilizados para a tropa e com algumas aproximações, mesmo minoritárias, sem dúvida nenhuma, também à juventude operária, certos sectores da juventude operária que começam, nessa altura, a sentir-se atraídos pelas propostas políticas que a extrema esquerda apresentava.
Locutora - Que propostas? Que propostas eram essas?
Fernando Rosas - Bom, a extrema esquerda distinguia-se nalgumas coisas importantes do Partido Comunista. Em primeiro lugar, distinguia-se quanto às referências fundamentais. Enquanto que a União Soviética e o chamado campo socialista eram a grande referência, o grande exemplo, o grande modelo do discurso do PCP, já nessa altura a extrema esquerda fazia uma violenta denúncia, violenta é o termo, violência verbal do modelo soviético que era denunciado como sendo um novo modelo imperialista, o social-imperialismo, e uma sociedade que seria socialista nas palavras, mas fascista nos actos. Social-fascismo, outra expressão que nessa altura se utiliza. E portanto há uma radical, uma crítica muito radical ao modelo, opunha-se normalmente, nessa altura, o modelo da Revolução Cultural Chinesa, da rotura da Revolução Cultural Chinesa contra exactamente o modelo soviético na China ou então, dependia das sensibilidades, da sociedade albanesa porque depois, dentro dos grupos m-l, as sensibilidades mais pró-simpatizantes com o modelo chinês e as mais próximas do modelo albanês começam também a divergir entre si. Isto quanto à representação. No que tocava à luta interna, a divisão virava-se para problemas de estratégia e táctica. O Partido Comunista era alcunhado de partido revisionista, reformista, um partido que era, apesar de ter um discurso estratégico ligado ao levantamento nacional, à insurreição seria um partido que teria prescindido desse objectivo em nome de se aliar com as forças social-democratas, reformistas, gradualistas da oposição e privilegiaria esse tipo de unidade a uma acção verdadeiramente revolucionária, de mobilização da massa trabalhadora, do campesinato com vista a fazer-se, com vista à realização duma insurreição de cariz socialista e portanto eram críticas que respeitavam à linha estratégica, à linha táctica e ao próprio modelo organizativo onde se criticava as práticas autoritárias, não democráticas do Partido Comunista. Eu não diria já estalinistas porque o Estaline é muito recuperado por, praticamente, todos estes grupos de extrema esquerda, exactamente porque se entendia que o partido da União Soviética tinha atacado o Estaline, no fundo segue-se o exemplo chinês, que tentam então recuperar o Estaline como o elemento distintivo da via chinesa relativamente à via soviética onde se tinha feito essa crítica do Estaline ou essa crítica parcial ao Estaline e portanto estes partidos são, além de se reivindicarem do marxismo e do leninismo, são também fortemente estalinistas e alguns mais maoistas em termos de prática, mais maoistas no sentido de imitação de certas práticas, estilos, até maneiras de vestir da China do que propriamente outros.
Locutora - A quantidade de grupos que surgiram não enfraqueceu a acção que...
Fernando Rosas - Eram grupos de, havia vários tipos de grupos, enfim, não vou agora estar a dizer todos, quase todos, mas alguns com mais implantação no interior e outros com mais implantação no exterior. Havia dois particularmente inseridos aqui em Portugal, o MRPP propriamente que tinha o grosso da sua organização clandestina em Lisboa, na margem norte do Tejo, também na margem sul, ainda que menos e depois tinha pontas um pouco por vários pontos do país. Sei lá. Estou-me a lembrar de Santarém, do Entroncamento, Aveiro, Águeda, enfim Porto, um pouco, mas o centro era Lisboa e arredores. E depois havia um outro grupo que também, bem implantado nos sítios onde actuava, que eram limitados, que era o Grito do Povo, o Grito do Povo era o nome do jornal que eles tinham e que mais tarde vem a agrupar-se numa organização chamada Organização Comunista Marxista-Leninista de Portugal, OCMLP. Estes dois grupos eram os grupos que tinham mais actividade no interior antes do 25 de Abril e eram grupos muito activos, no sentido de que eram grupos que davam uma grande prioridade à prática, à agitação. Distribuíam panfletos, pintavam paredes, convocavam, por vezes, manifestações, mesmo que pequenas, tinham uma grande interferência nas lutas sociais quando elas apareciam e eram, portanto, grupos marcados, como é próprio destes grupos radicais, da sua atitude e do seu comportamento social e político, eram grupos muito militantes, marcados por uma forte dedicação, uma forte ideologização e grupos com uma muito intensa prática de agitação política, de intervenção revolucionária. Depois havia outros como o PCP-ML mais desligado da luta no interior e com mais intervenção na emigração e depois os outros pequenos grupos que derivavam da cisão disto ou da cisão daquilo, mas que tinham menor visibilidade pública. Digamos que o MRPP, em Lisboa, o Grito do Povo, OCMLP, no Porto, eram desses grupos de extrema esquerda, de linha marxista-leninista e maoista, eram os grupos que tinham, de facto, maior militância, maior intervenção, maior visibilidade. Até parece que é por causa de um 1º de Maio Vermelho que o MRPP teria convocado para 74 que o general Otelo, o major Otelo, general, foi por pouco tempo, o major Otelo resolveu antecipar a saída das tropas no 25 de Abril de forma a tentar evitar aquilo que ele temia que fosse o confronto com consequências imprevisíveis no 1º de Maio de 74.
Locutora - Fernando Rosas vamos falar do MRPP que fundou, não é, juntamente e vamos recordar alguns nomes notáveis na altura.
Fernando Rosas - Nessa altura nós fundámos o MRPP em 70. Fui eu, juntamente com outros três meus companheiros. Na altura era o Arnaldo Matos que era meu colega de faculdade, era um operário dos TLP que era de Vila Franca de Xira, chamado João Machado e era um outro jovem que estava mobilizado na tropa, era sargento, que se chamava Vidaul. Daí surgiu esta ideia de sair o MRPP. Eu estava a coordenar a actividade da Esquerda Democrática Estudantil que era um movimento radical que tinha aparecido em 68, na sequência das primeiras manifestações contra o Vietname e que tinha passado a mobilizar os estudantes quer nas crises académicas quer na luta contra a guerra colonial. Esse Vidaul animava uma organização também clandestina na tropa que se chamava Resistência Popular Anticolonial que era uma organização de soldados e de sargentos e de jovens oficiais contra a guerra colonial. O João Machado era um homem que tinha saído das eleições de 69 com uma série de contactos em núcleos operários ali da zona de Vila Franca e o Arnaldo Matos era, enfim, um conhecido dirigente estudantil da Associação Académica de Direito. Juntaram-se os vários pequenos grupos e influências para criar um movimento com vista a refundar o Partido Comunista porque todos estes grupos tinham um discurso que é importante compreender. Eles entendiam que, enfim, de acordo com a ortodoxia leninista de que não poderia haver a revolução sem existir um partido de vanguarda do proletariado que conduzisse essa revolução e que portanto era preciso ou reorganizar ou refundar esse partido, ou seja, o Partido Comunista tinha deixado de ser esse partido, tinha traído, tinha-se tornado um partido revisionista e então era preciso ou refundar esse partido, criar um novo, ou então na postura mais radical ainda que o MRPP vem a tomar, nunca teria existido um verdadeiro Partido Comunista em Portugal e o MRPP candidatava-se a sê-lo que é, enfim, uma postura levada ao extremo enquanto que os outros reconheciam o património anterior do movimento operário, nomeadamente o património comunista, mas achavam que ele tinha sido traído e portanto era preciso retomá-lo. O MRPP, num gesto radical, entendia que não havia passado comunista e era preciso iniciá-lo e portanto digamos que estas eram, estas eram as perspectivas com que o MRPP vai iniciar a sua luta política e o MRPP tinha uma coisa muito importante que também o distinguia um pouco dos outros. Além desta que em termos daquelas questões teóricas da época era, não era assim nada de somenos, era assim uma coisa, uma grande diferença, era como um pouco excluir-se da família. É que o MRPP privilegiava muito a prática, a luta, o activismo, aquilo que vai marcar, por exemplo, a designação de um dos seus grupos estudantis da altura que era o Estar na luta, Ousar lutar. Tudo, aliás, expressões retiradas das palavras de ordem da Revolução Cultural Chinesa que, aliás, era de facto um modelo mais forte para o MRPP do que para os outros grupos marxistas-leninistas em termos de ideologia, em termos de ética, em termos de combatividade e então entendia-se que o partido era uma coisa que deveria surgir desta luta prática. Dever-se-ia construir na prática, não se devia construir nem no estrangeiro, nem através da elaboração de grandes documentos programáticos donde saía o Partido Comunista, devia surgir na prática na luta, da luta das massas, como então se dizia, e portanto daí o MRPP ter uma actividade militante muito intensa e muito interveniente nesta altura o que fazia com que, por exemplo, houvesse coisas interessantes. Vim a encontrar, já depois, já como historiador, muitos anos depois, fui encontrar nos relatórios da PIDE e da própria Guarda Nacional Republicana informações respeitantes, por exemplo, à actividade do MRPP que o davam como uma organização muito poderosa em certas zonas do país.
Locutora - Vocês eram perseguidos e portanto a polícia política tinha como alvos de preferência o PCP. Quando vocês... [Fernando Rosas - Nessa altura discutia-se] Mas vocês apareceram e ...
Fernando Rosas - A polícia, para a polícia a extrema esquerda foi uma grande complicação porque não percebia rigorosamente como é que aquilo aparecia, donde vinha, o que era, etc. A polícia estava longamente habituada a lidar com o Partido Comunista que, aliás, tinha infiltrado em várias zonas, em várias regiões, onde o Partido Comunista estava organizado, tinha infiltrações regulares da polícia. A polícia estava muito habituada a lidar com os métodos de organização, a filosofia de comportamento do Partido Comunista. O aparecimento da extrema esquerda foi uma imensa confusão para a polícia. Primeiro porque eram muitos grupos, eles não faziam ideia nenhuma como é que aquilo funcionava. Esses grupos utilizavam métodos de organização e de actividade que fugiam muito aquilo que a polícia conhecia e algumas das práticas clandestinas mais usais do Partido Comunista e portanto a polícia que se vai começando a preocupar, gradualmente, com a extrema esquerda, apanha-os, normalmente, nas agitações de rua. É quando a polícia os apanha. Prende brigadas de agitadores, prende pessoas a pintar as paredes, prende pessoas a distribuir papéis e vai torturá-los muito violentamente. Aliás, a polícia fez várias dezenas de prisões e de processos de militantes da extrema esquerda no seu conjunto, da OCMLP, dos Comités Comunistas Revolucionários, sobretudo aqui em Lisboa prendeu algumas dezenas de jovens estudantes, de jovens activistas ligados a esses grupos e mesmo do MRPP.
Locutora - E o Fernando Rosas foi preso?
Fernando Rosas - Bom, eu fui preso várias vezes, mas uma delas já sob a acusação de pertencer ao MRPP. Logo no princípio, foi em 71. Eles ainda não sabiam bem o que é que aquilo era e fui preso porque tinha uns documentos, porque um colega meu, preso também nessa altura, foi apanhado com uns documentos e atribuíram-me a sua autoria e portanto fui preso por causa disso, mas eles ainda estavam muito na infância da arte. Depois sim, porque começaram a preocupar-se a sério. Prenderam vários militantes do MRPP que foram, aliás, muito violentamente torturados na polícia. Devo dizer-lhe com, passaram por muitos maus bocados. Estou-me a lembrar-me do José Luís Saldanha Sanches, estou-me a lembrar do Horácio Crespo, hoje professor em Económicas, estou-me a lembrar do Carlos Santos, hoje um publicitário conhecido, estou-me a lembrar do subdirector da informação da SIC, o Luís Marques. Todos eles passaram momentos muito duros, foram quase todos presos na rua ou já como quadros clandestinos ou então em acções de agitação e todos eles passaram por momentos de muita dureza. A polícia tinha um grande, começou a ter um grande desespero em relação à extrema esquerda. Eles não percebiam o que é que aquilo era e percebiam que ela crescia.
Locutora - E chegaram a perceber?
Fernando Rosas - Não, não tiveram muito tempo para isso porque repare, a extrema esquerda começa a ser muito visível em termos de agitação política, 72, 73, 74 e portanto eu direi que o regime cairia se polícia dissolvida sem que eles tivessem percebido bem o que é que se passava em termos de extrema esquerda. Quer dizer eles apanhavam, os que apanhavam e tentavam perceber, mas não houve... e aliás não houve uma clara percepção. Aliás não era só, o panorama devo dizer que era um pouco confuso, era preciso estar um bocado dentro daquilo para perceber o que é que era o quê naquela conjuntura. Provavelmente foi por causa disso que os primeiros funcionários que o Partido Comunista mandou para a Comissão de Extinção da PIDE foram interrogar os inspectores da PIDE também sobre a extrema esquerda e sobre mim próprio, já agora.
Locutora - Fernando Rosas a extrema esquerda tem um papel activo nas lutas estudantis, algum papel na luta política em geral. A guerra colonial...
Fernando Rosas - Eu diria que, se houve campo onde a extrema esquerda teve um indiscutível ou o mérito de pôr questões novas e importantes na mesa, foi na questão da guerra colonial. A guerra colonial era uma questão muito mal digerida pela oposição democrática até muito tarde. Mesmo por parte do Partido Comunista apesar de ter uma posição teórica que tinha ficado clara a partir dos anos 60 quando a questão colonial, não direi tanto antes, mas uma questão clara, era uma questão que os compromissos unitários do Partido Comunista travavam um pouco no que toca a ter uma posição clara, uma prática clara quanto e contra a guerra colonial e eu acho que a extrema esquerda teve, sobretudo a partir do final dos anos 60, o mérito indiscutível de trazer, clara e inequivocamente, a questão da luta contra a guerra e o apoio à luta pela independência nacional dos povos das colónias, trazê-lo duma forma absolutamente clara para a rua, em manifestos, em manifestações, em dezenas de protestos, os mais variados, de publicações clandestinas para pôr esse problema e impô-lo, de alguma maneira, à oposição como um dado indiscutível. Era, acabou, digamos, a ambiguidade oposicionista em relação à questão colonial e a condenação inequívoca da guerra e a defesa também inequívoca do direito dos povos das colónias à autodeterminação e à independência foi uma questão que foi colocada desta forma, pela primeira vez, pela extrema esquerda e dessa forma também imposta ao conjunto da oposição de esquerda já no início dos anos 70.
Locutora – Terminámos hoje a série de programas dedicados ao marcelismo e as oposições. Hoje com Fernando Rosas a recordar a explosão da extrema esquerda.
Fizeram este programa Armando Pinho, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

(Programa gravado da Antena 22 de Maio de 1998)
Transcrição: Ireneu Batista