Entrevista com General Pedro Pezarat Correia - Memórias do brigadeiro Pezarat Correia: A preparação do 25 de Abril

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Pezart Correia e Fernando Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por Henrique Soares, Ricardo Olsen, Fernando Humberto, Ana Colaço, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 
 
No primeiro dia de 1999 vamos ficar com as memórias do brigadeiro Pezarat Correia. A acompanhar-nos está, como habitualmente, Fernando Rosas.
Fernando Rosas - Muito obrigado senhor brigadeiro por estar aqui connosco hoje. Eu vou começar consigo esta conversa, como tenho começado com outros camaradas seus. Como é que o senhor foi parar à tropa? Porquê a carreira militar? Porquê essa escolha no Portugal dos anos 50, creio eu que sim.
Pezarat Correia – Bom. Primeiro, também boa tarde. Muito obrigado pelo vosso convite. Tenho muito gosto em participar convosco neste programa. Olhe, eu dir-lhe-ia que o meu aparecimento na vida militar é quase que inevitável, quase que não podia ter sido outra coisa. É claro que as coisas não são bem assim, até porque eu sou um de cinco irmãos e, enfim, nem todos foram militares. Mas, olhe, eu nasci numa família militar. O meu pai era militar. O pai do meu pai tinha sido militar. A minha mãe só tinha um irmão, era militar, e eu aos dez anos vim para o Colégio Militar. Aí é que a coisa me começa a distinguir dos meus irmãos porque eu fui o único dos meus irmãos que vim para o Colégio Militar. A família estava no Porto, onde eu nasci, lá fizemos a escola primária e portanto eu sou um deslocado da família, aos dez anos para Lisboa, venho para o Colégio Militar. Além disso, o meu pai, quando eu estava no meu terceiro ano do Colégio, portanto tinha os meus treze anos, o meu pai vai para a Guiné onde permaneceu durante bastante tempo, de tal maneira que eu só voltei a ver o meu pai já era cadete da Escola do Exército. Tive portanto aqueles anos, dos treze aos dezoito anos, sem ver o meu pai. Vi a minha mãe que veio cá, uma questão de doença, depois regressou outra vez à Guiné e eu, praticamente, comecei a viver sozinho, a partir dessa altura. Era uma altura, década de 40, ainda não havia os transportes fáceis, ainda não havia…, nunca fui passar as férias à Guiné durante esse período e, até certo ponto, eu não só passava as minhas férias, os meus feriados, os meus fins-de-semana no Colégio, era aluno interno a tempo inteiro, digamos assim, mas de vez em quando saía, tinha os meus fins-de-semana em casa de amigos e o meu mundo, o meu mundo, o mundo da minha infância foi realmente o mundo do Colégio Militar. Na altura o mundo do Colégio Militar era um mundo talvez mais militar do que é hoje porque a percentagem, talvez, de filhos de militares que estavam no Colégio Militar era maior, admito eu, do que aquela que é hoje. Portanto, quando se colocou a questão, cheguei ao sétimo ano, acabei o sétimo ano no Colégio e a transitar, enfim, para a vida universitária, sozinho em Lisboa, como que a transição natural foi ir para a Escola do Exército. Tinha internato e eu, digo-lhe mais, eu admito que, mesmo durante aquele período em que as pessoas começam a amadurecer o que é que vão ser, eu creio que nunca, nunca pensei em ser outra coisa que não fosse ir para a Escola do Exército.
Fernando Rosas - E portanto entra para a Escola do Exército em que ano?
Pezarat Correia – Em 1950.
Fernando Rosas - Em 1950. Com dezassete anos, ainda no começo da década.
Pezarat Correia – No começo da década, exactamente.
Fernando Rosas - Quer dizer que quando se dão as eleições do general Delgado, o senhor já é cadete, já é alferes.
Pezarat Correia – É verdade, mas eu, entretanto, quando acabo o curso da Escola do Exército, depois há o tirocínio em Mafra, e quando acabo o tirocínio em Mafra e quando estou para ser promovido a alferes, eu vou para a Índia. Lembra-se que em 1954 tinha havido acontecimentos – Dadrá, Nagar Aveli. Houve aquela movimentação e eu já assisti àquilo com uma certa ironia porque, além disso eu também tinha…, mas também falamos nisso provavelmente. Também tinha uma certa tradição já republicana e de oposição. [Fernando Rosas - De família?] De família, na família. [Fernando Rosas - Da parte do seu pai?]
Pezarat Correia – Da parte do meu pai e de maneira que eu já encarava aquilo com um certo distanciamento. De qualquer forma, eu pensei: Bom, acontecer isto na Índia, parece que são as primeiras, o início da minha vida militar, há as primeiras acções, digamos, de militar, e eu ofereci-me para a Índia e fui num batalhão que mobilizou exactamente para a Índia nessa altura. De forma que eu vou para a Índia em 1954 onde fiz toda a minha vida de subalterno praticamente e regresso em 1957, mais dois anos e meio de Índia também, nessa altura, sem férias na metrópole, sem férias em lado nenhum… Foram ali dois anos e meio quase em clausura, onde tive tempo para aprofundar algumas leituras, para fazer alguns contactos, inclusivamente com pessoas de Goa que na altura eram já consideradas pessoas também de oposição, de Goa. Aliás, com algumas delas ainda hoje mantenho contactos quase quarenta e tal anos depois. Mas entretanto, dá-se uma coisa curiosa. Eu estava numa companhia isolada do resto do batalhão. Na Índia as distâncias eram pequenas, portanto era um isolamento relativo. De qualquer modo, o quartel era um quartel de companhia, onde eu era subalterno e tive o privilégio de ter como subalterno miliciano nessa minha companhia um homem de quem eu fiquei amicíssimo e que era um homem já politicamente com alguma experiência e com alguma formação. Um homem que conhecem com certeza, principalmente o professor Fernando Rosas conhece bem, penso eu, que era o Fernando Onete. [Fernando Rosas - Ah, muito bem.] Ficámos amicíssimos e a partir daí nós iniciámos como que uma amizade conspirativa.
Fernando Rosas - Mas ele estava na carreira militar também?
Pezarat Correia – Ele era miliciano, mas ele estava já na carreira militar em Portugal, para além do serviço militar obrigatório, ele ofereceu-se para a Índia. [Fernando Rosas - Ele ofereceu-se para a Índia.] Ofereceu-se. Ele até admitia a possibilidade que se tivesse uma oportunidade de entrar para o Quadro Permanente. Ele gostava da vida militar, ele gostava da vida militar. Tinha um irmão que era militar, suponho que ainda é vivo. É coronel. Mais velho do que ele. E a verdade é que fizemos ali uma amizade muito sólida e uma amizade em que o Onete teve claramente uma influência no aprofundamento das minhas preocupações políticas. Lembro-me, por exemplo, que foi o Onete, o homem que me emprestou o primeiro livro que, na altura, nem sequer havia ainda a edição em Portugal, só havia a edição brasileira, mas um livro que marcou a nossa geração, a nossa juventude que era Os Thibault, por exemplo. E havia determinadas… depois havia o Jean Christophe, livros do… alguns ensaios de natureza política e foi para mim um contacto extremamente benéfico.
Fernando Rosas - Mas no ambiente militar isso era uma atitude muito isolada.
Pezarat Correia – Sabe que nas colónias a gente tinha uma certa tendência para podermos, como que… e naquele período na Índia, como que se criou um clima de alguma contestação e que não era… Nós vivíamos em conjunto, permanentemente, dentro do quartel. De maneira que às tantas, os problemas eram aflorados. Depois tínhamos oficiais milicianos dentro daquela corporação. Bem, mas nem tudo era uniforme. Eu posso-lhe dizer que, por exemplo, nessa minha companhia estava o Onete, enfim, que depois mantive essa cumplicidade, mas ao mesmo tempo tínhamos lá um outro tenente miliciano mais antigo do que nós que quando regressa entrou na PIDE, foi inspector da PIDE. De maneira que havia essas contradições. O nosso comandante de companhia, por acaso era um homem inicialmente um homem do Quadro Permanente, mas que era um liberal e um homem escritor, escrevia. Escreveu uns livros e portanto era um indivíduo que alinhava perfeitamente connosco nessas nossas preocupações, nessas nossas leituras.
Fernando Rosas - Portanto, regressam em 57. Delgado explodiu.
Pezarat Correia – Depois vem a experiência Delgado. Por acaso, repare, já agora, tem aqui uma coisa interessante. Eu já conhecia o general Delgado um pouco de tradição porque o filho do general Delgado, é hoje comandante da TAP e que foi oficial, é oficial da reserva na Força Aérea, é do meu curso. Do meu curso do Colégio Militar de entrada. Fizemos o curso todos juntos, sete anos. Depois estivemos na Academia juntos. Ele depois saiu um ano mais tarde porque perdeu um ano na Academia, mas éramos muito amigos. Digo isto com uma certa tristeza porque hoje o filho do Humberto Delgado é um homem que não assume, não assume as tomadas de posição do pai. Inclusivamente comigo tem também um grande distanciamento. Eu digo isto com alguma tristeza porque, por exemplo, com as duas irmãs dele, a Iva e a Humberta, sou muito amigo delas e elas assumem principalmente…
Fernando Rosas - Ia lá a casa?
Pezarat Correia – Eu fui até, ia à casa deles, às vezes, com o filho, quando o pai estava nos Estados Unidos e a casa estava… e ele é que tinha a chave da casa e a gente, às vezes, foi lá a casa. De qualquer forma, eu já tinha o conhecimento do general Humberto Delgado e eu conhecia-o pessoalmente. Ele ia às vezes ao Colégio e era um homem ousado, era um bocado iconoclasta nas suas afirmações. Curiosamente quando o general Delgado se apresenta à presidência da república, eu já tinha como que uma indicação premonitória dessa sua provável candidatura que eu, aliás…
Fernando Rosas - Soube disso antes?
Pezarat Correia – Eu não foi o saber antes, mas tive uma indicação. [Fernando Rosas - Calculou que fosse possível.] Dou-lhe e vou-lhe dizer porquê. Com essa estadia do meu pai na Guiné, o meu pai tinha uma série de amigos daqui que eram, enfim, seus correligionários, que, já agora, vem a talhe de foice, o meu pai desde a sua juventude tinha sido um homem da maçonaria, era um democrata, era um militar do Quadro Permanente, mas era um democrata. Esteve envolvido no primeiro movimento contra a ditadura no 3 de Fevereiro, do Porto, de 1927, foi preso, foi deportado para Angola, esteve deportado, passou os seus maus bocados. Depois, mais tarde, foi reintegrado. Portanto eu também tinha um pouco essa tradição, mas que bebi, bebi um pouco por influências indirectas porque, como eu lhe digo, quando eu me separei do meu pai aos treze anos, o meu pai ainda não falava, mas eu já me apercebia que o meu pai tinha alguns cuidados connosco. Por exemplo, quando eu venho para Lisboa, para o Colégio Militar o meu pai teve a preocupação de me dizer: ‘Não fales em determinadas coisas’. O meu pai era amigo do Queiroga, estava em preparação o golpe da Mealhada. [Fernando Rosas - Exactamente. Em 46.] Exactamente. E o meu pai teve essa preocupação. Entretanto, a gente tinha que ter aqui uma pessoa chamada o Encarregado de Educação, um responsável. Nós éramos menores, responsável, enfim, pelo acompanhamento da nossa vida no Colégio Militar e era meu Encarregado de Educação, foi durante algum tempo meu Encarregado de Educação um homem que tinha estado também deportado com o meu pai em Angola, portanto eram amigos e tinham essa cumplicidade clandestina da política, um homem que era uma figura de grande destaque na oposição democrática, um homem que estava muito ligado ao Norton de Matos que era o Mondaim, que era um militar tenente-coronel farmacêutico, mas em cuja farmácia, aliás, eu já falei sobre isto com alguns velhos republicanos e todos eles o conheciam muito bem, como foi o Magalhães Godinho, o próprio Mário Soares que era a farmácia do Loreto, a chamada a Farmácia Barreto, que ainda lá está a farmácia, suponho que já não se chama assim, de que ele era o proprietário e aquilo era um centro de conspiração. Bem, e esse homem, entretanto como eu fui crescendo, na ausência do meu pai foi o homem que me foi introduzindo bastante. O professor Fernando Rosas sabe, que é um estudioso destas coisas, que naquela década de 1950, na década de 50, uma das únicas áreas em que a oposição tinha alguma possibilidade de aparecer e que até o fazia, aproveitava-o como instrumento de contestação ao salazarismo pela sua aliança com o franquismo, era o grupo dos Amigos de Olivença. O Grupo de Amigos de Olivença daquela altura era um grupo de republicanos que aproveitavam aquele grupo…
Pezarat Correia – O general Delgado pertencia ao grupo.
Pezarat Correia – Ora, exactamente. Há um dia em que eu leio no jornal que há um jantar, ainda antes dele se apresentar como candidato e que há um jantar do Grupo de Amigos de Olivença, em que esteve presente o general Humberto Delgado e eu estranhei e como tinha conhecimento desse Grupo de Amigos de Olivença…
Fernando Rosas - Achou que era um sinal.
Pezarat Correia – Achei que era um sinal e falei com o tenente-coronel Oliveira, o tal tenente-coronel farmacêutico e fiz-lhe referência e ele nessa altura já falava comigo, eu já tinha vindo da Índia, eu já vinha portanto politicamente, claramente decidido a participar no que fosse possível e fiz-lhe essa observação e ele diz-me: 'Pois é, e já agora diz-me, conheces o general Delgado?' E eu lá lhe dei as minhas opiniões e ele como que me confidenciou que o general Delgado começava a aparecer como a figura possível para poder vir a ser o candidato da oposição. Como, aliás…
Fernando Rosas - Como aliás, veio a acontecer. E durante a campanha eleitoral, o senhor brigadeiro era então?
Pezarat Correia – Tenente.
Fernando Rosas – Tenente. Participou, assistiu, foi envolvido de alguma maneira?
Pezarat Correia – Participei, participei. Isto é, fui um observador atento. Evidentemente, como militar que era…
Fernando Rosas – Onde é que estava colocado?
Pezarat Correia – Estava colocado em Infantaria 1, que é na Amadora, onde mais tarde foi o Regimento de Comandos. Era aí a minha unidade e, enfim, lembro-me que, por exemplo, nessa altura ter sido contactado pelo Oneto, o Oneto estava na candidatura do Delgado. Foi lá ao quartel, foi lá almoçar comigo, tivemos a conversar e ele chegou-me a perguntar, de uma maneira um bocado atrevida. ‘Olha lá, qual é a possibilidade que tu tens aqui de levantar este regimento?’ E eu disse: ‘Oh Oneto, vamos lá a ter a noção das dimensões, eu sou aqui um simples tenente, não tenho aqui contactos políticos dentro do regimento, inclusivamente Infantaria 1 e as unidades de Lisboa naquela altura eram unidades em que os quadros superiores eram quadros de confiança do Regime, de uma maneira geral’. Portanto, é um bocado ousado. Agora, nós podemos ver… Bom, isto estava em preparação aquilo que veio a ser, já o Humberto Delgado tinha, enfim, previsto várias tentativas que depois não conseguiu levar a efeito, enfim, que estão todas registadas cronologicamente. Ele tentou, ainda na véspera das eleições, como sabe, um golpe militar, depois tentou aliciar os chefes militares, foi recebendo recusas sucessivas, até que veio, digamos, a concretizar-se o 12 de Fevereiro de 1959, quando ele já estava refugiado. [Fernando Rosas – O golpe da Sé.] Exactamente. O chamado golpe da Sé. Onde o Oneto foi preso pela primeira vez, exactamente
Fernando Rosas – Nesse está envolvido o senhor brigadeiro.
Pezarat Correia – Indirectamente, porque eu nessa altura já tinha saído de Infantaria 1, mas entre, nesse lapso, logo a seguir às eleições de Humberto Delgado, eu fui nomeado para Mafra. Ah, mas já agora para não deixar de responder à pergunta. Bom, e ele, claramente, ali em Infantaria 1, mas com pouco acolhimento. Nós tivemos algum receio de falar, mas com um ou dois camaradas com quem eu tinha mais confiança, estávamos claramente contra, enfim, o Regime da altura e vendo com alguma ansiedade e esperança a eleição do Humberto Delgado. De qualquer forma, eu não fui votar sequer porque eu não estava recenseado, estava recenseado ainda por Goa, se não me engano. De maneira que quando o comandante, em determinada altura, diz: ‘Bom, vocês agora, hoje estamos de prevenção, estava tudo de prevenção, mas podem sair para ir votar’. E eu nem sequer tive que lhe dizer que não ia porque não estava recenseado, mas lembro-me que nessa altura, um homem que tinha sido meu instrutor na Escola do Exército e ali era meu comandante de companhia, era capitão, e que tomou uma atitude que registei e que depois mais tarde se veio a confirmar. Ele estava de oficial de dia e o comandante disse-lhe e eu ouvi esta conversa: ‘Senhor capitão fulano de tal, vou-lhe dizer o nome, capitão Pinto Ferreira que mais tarde vem a ser o comandante da polícia a seguir ao 25 de Abril. Capitão Pinto Ferreira, o senhor está de oficial de dia, mas se quiser o senhor deixa aí o braçal e vai votar’. E ele, que era um homem com uma grande dignidade e com uma certa coragem moral, disse: ‘Não meu comandante, eu não voto. Eu não colaboro em palhaçadas.’ E eu aí já vi que não estava sozinho nas minhas preocupações. Bom, entretanto fui para Mafra fazer o Curso de Comandantes de Companhia, durante três ou quatro meses, e aí junta-se um grupo do meu curso, em que claramente nos identificámos numa posição política eticamente firme. Eu e os outros dois, dois nomes que depois do 25 de Abril vieram a ficar também largamente conhecidos e que éramos do mesmo curso e que eram o Mário Firmino Miguel e o Carlos Fabião e a partir daí mantivemos sempre alguma cumplicidade, principalmente com o Fabião.
Fernando Rosas – Eram da mesma idade, sensivelmente.
Pezarat Correia – Da mesma idade. O Fabião ligeiramente mais velho, mas do mesmo curso, do mesmo curso, aquilo que se chama o curso de saída da escola. Eu, entretanto, acabo o curso em Mafra e quando estou para ser promovido a capitão, fui naturalmente transferido de unidade o que era natural e saio de Infantaria 1 e fui para Santa Margarida. Quando se dá o golpe da Sé eu estou em Santa Margarida, onde, curiosamente, também está o Varela Gomes e já agora até lhe vou contar… Havia umas manobras que estavam a decorrer. Vou-lhe contar um episódio interessante que é quando eu, digamos, entro na organização militar conspirativa. Até aí eu não tinha entrado, mas durante as eleições do Delgado nós fomo-nos apercebendo que havia um grupo de capitães que era o grupo dos capitães do Delgado, assim chamados… onde depois se veio a manifestar o Almeida Santos e o Álvaro de Andrade e o Vicente da Silva e outros, o Ribeiro Simões, enfim, muitos outros, mas do qual o Varela Gomes talvez fosse, pelo menos, o homem mais activo, e o Varela Gomes, depois das eleições do Delgado, foi despachado para os Açores, transferiram-no para os Açores. Entretanto, eles fazem-no regressar a Portugal e ele sendo um homem de Artilharia, tinha o Curso Geral do Estado Maior, foi colocado em Infantaria 1, não sei porquê. Se calhar para estar fora do seu meio ambiente normal e eu quando venho de Mafra, acabo o curso, apresento-me na minha unidade para estar ali dois ou três dias para receber a ordem de deslocamento para a nova unidade que era Santa Margarida e é aí que eu conheço o Varela Gomes. Eu não quis imediatamente, enfim, pôr em bicos de pés e dizer ao Varela Gomes o que eu pensava, quem eu era, mas também não foi preciso muito tempo porque nesse próprio dia, nós depois de acabar o serviço, aquilo que se chama o toque de ordem, da gíria militar, metemo-nos para apanhar o comboio, enfim, um grupo de oficiais vínhamos para Lisboa onde tínhamos as nossas casas. Vínhamos no comboio e estava nessa altura a ferver a questão de Cuba, tinha acabado praticamente o Fidel de conquistar o poder em Cuba. Passa-se em 1959, exactamente, e vínhamos a conversar sobre isto e há um oficial miliciano que, a determinada altura, começa a tecer gravíssimas críticas ao Fidel de Castro e eu apenas deixei cair assim uma frase deste género: Bom, talvez o que seja pena é nós não termos cá um Fidel de Castro em Portugal e não disse mais nada. A conversa ficou um bocado por ali, chegámos a estação do Rossio, o Varela Gomes deixou passar os outros oficiais, toca-me no braço e diz-me assim: Vem comigo! Vem comigo! Bem, eu fui com ele e fomos para o café Restauração que era ali à saída da estação do Rossio, onde o Varela Gomes se ia encontrar com a mulher dele, a Maria Eugénia, e com um outro oficial que já morreu, o Ruben de Andrade, que já estavam metidos na conspiração. É aí que eu entro naquilo que mais tarde veio a ser o Movimento Militar Independente, é aí que publicava a “Tribuna Militar”. Bom, e a partir daí comecei a ter contactos regulares com o Varela…
Fernando Rosas – Mas não foi tocado pelo desmantelamento do golpe da Sé?
Pezarat Correia – Não fui atingido. Não fui atingido porque eu, ao fim e ao cabo, não estava realmente envolvido naquele grupo. Aquele grupo acabou por se situar mais naquelas unidades ali da Calçada da Ajuda. Foi Lanceiros 2, Cavalaria 7 e Infantaria 1, perdão, Metralhadoras 1, que era no quartel da antiga Infantaria 1. De maneira que aqueles oficiais também pouco disseram e o próprio Varela Gomes não foi preso, naquela altura, nem o Goban, nem muitos outros. O que é certo é que aquilo depois passou, os homens estiveram presos, dá-se o caso da fuga de Elvas, com o Almeida Santos e o…
Fernando Rosas – Mas a “Tribuna Militar” continua a sair?
Pezarat Correia – A “Tribuna Militar” continua a sair, continua a sair e até com alguns números, se a gente ler hoje e eu tenho feito algumas transcrições e vou continuar a fazer da “Tribuna Militar” há, por exemplo, já em 1960, antes de começar a guerra em Angola, algumas tomadas de posição sobre a guerra colonial na “Tribuna Militar” que são mais avançadas do que qualquer posição da oposição democrática.
Fernando Rosas – A “Tribuna Militar” estava ligada, directamente ou indirectamente, à organização clandestina do Partido Comunista ou era uma organização de militares anti-fascistas, digamos assim.
Pezarat Correia – Não, a “Tribuna Militar” era, exclusivamente, do grupo do Movimento dos Militares Independentes. Não lhe posso dizer porque isso até não sei, que apoio é que tinha em termos de… onde é que era impressa. Porque era impressa na clandestinidade e era provável que tivesse alguns apoios de células clandestinas, não sei se do PCP, mas o PCP era o único que na altura estava organizado em Portugal, mas isso não lhe posso dizer. O que lhe posso dizer é que aquilo era, realmente, um órgão e que praticamente a colaboração na “Tribuna Militar” era só de militares, era só escrito por militares e, pronto, nós tínhamos os nossos encontros.
Fernando Rosas – Esse movimento de militares, oficiais intermédios, no movimento militar independente vai perder-se, de alguma maneira. Quer dizer, com a guerra colonial vai dispersar-se.
Pezarat Correia – Exactamente. É um dado fundamental. Isto é, a única manifestação que depois o MMI tem é com o golpe de Beja, esse já liderado por Varela Gomes. Ora quando se dá o golpe de Beja, grande parte dos militares do Movimento Militar Independente estão dispersos. Eu, por exemplo, estou em Moçambique, já nessa altura. Há muitos camaradas em Angola, houve uma dispersão muito grande.
Fernando Rosas – Vocês não tinham nenhum contacto com aquele grupo de oficiais superiores ligados ao Botelho Moniz que estavam a preparar… onde se alimentava a conspiração que vai dar na abrilada de 61.
Pezarat Correia – Digamos que o grupo do Botelho Moniz e parte dos oficiais não generais, mas do grupo mais activo junto do Botelho Moniz…
Fernando Rosas – Tenente-coronel Costa Gomes, por exemplo.
Pezarat Correia – Costa Gomes. O Costa Gomes estava no governo, mas o tenente-coronel, na altura devia ser major, provavelmente, o Ávila de Melo, não era o Ávila de Melo, o homem que tem um livro que depois era Secretário de Estado no 25 de Abril. Como é que ele se chama? Bom, agora não me estou a lembrar. Ele tem alguns livros escritos sobre isso. Eram militares havia, junto do Botelho Moniz, um grupo que estava ligado ao MMI, que esteve ligado ao Humberto Delgado.
Fernando Rosas – Porque havia pontes entre os dois…
Pezarat Correia – Repare, já agora tinha deixado passar esse episódio e é interessante. O Botelho Moniz aparece como Ministro da Defesa com uma afirmação contra o Santos Costa, fundamentalmente. O Craveiro Lopes naquela altura tinha deixado de ser Presidente da República, mas ainda tinha alguma influência e este grupo de militares estava fundamentalmente ligado era ao Craveiro Lopes [Fernando Rosas – Ao Craveiro, exactamente.], mas o Botelho Moniz aparece como que uma cedência que o Salazar teve que fazer, substituindo o Santos Costa pelo Botelho Moniz. De maneira que na ‘entourage’ do Botelho Moniz estão muitos militares do Movimento Militar Independente, mas depois há alguns mais radicais que se afastam que é o caso do Varela Gomes e doutros, enfim, ligados ao Varela Gomes. De qualquer forma, este grupo de militares estava receptivo, estava apoiante. Eu, por exemplo, estive, porque ainda cá estava nessa altura, apoiante da intenção do Botelho Moniz.
Fernando Rosas – Sabia o que se ia fazer?
Pezarat Correia – Perfeitamente e porque, como lhe digo, estava em Santa Margarida. Santa Margarida, naquela altura era a divisão Shape e era a unidade mais forte do país, se bem que estivesse a divisão, não estava toda concentrada em Santa Margarida. Em Santa Margarida estava o quartel general, estava o grupo de carros, estava lá, normalmente, um batalhão de infantaria em instrução, tinha algumas unidades de apoio, mas depois estava dispersa pelas unidades da região centro que eram Tomar, Abrantes, Leiria, eram onde estavam, digamos, as unidades, mas ali era o centro e o general comandante da divisão era, simultaneamente, o general comandante da Região Militar, com sede em Tomar. Acumulava. Quem estava em permanência em Santa Margarida, digamos que era o executivo em permanência a comandar a divisão era o 2º Comandante da divisão que era um brigadeiro. Na altura, o brigadeiro Pires Barata que era um homem claramente identificado com o Botelho Moniz. Um homem que nós já tínhamos alguma…
Fernando Rosas – Em Santa Margarida também chega a fazer-se, como noutros locais se fez, reuniões de oficiais a pedido do próprio Botelho Moniz ou sondar os oficiais…
Pezarat Correia – Exactamente. É a pedido do Botelho Moniz e com a autorização do general Beira Cruz que era o comandante de divisão e o comandante da região, o brigadeiro Pires Barata convoca uma reunião de oficiais nas vésperas, convoca uma reunião de oficiais e diz nessa reunião de oficiais no Quartel General e para o qual foram convocados os outros oficiais do campo militar de Santa Margarida o que é que estava em marcha, o que é que se ia passar e deixou muito claramente a ideia. O general Botelho Moniz vai impor a demissão do Presidente do Conselho. Se algum oficial que aqui esteja que não concorda, o exército, através das suas estruturas mais elevadas, está com o general Botelho Moniz, se alguém não concorda não lhe acontece mal nenhum, mas faz favor de se afastar para não estar aqui. Toda a gente acenou as cabeças. Eu e mais dois ou três que lá estávamos ficámos como que entusiasmados com a ideia, começámos imediatamente a trocar as nossas impressões, mas toda a gente acenou claramente as cabeças de concordância. Ninguém se manifestou contra. Quando estávamos à espera do dia, na manhã seguinte começamos a ouvir a rádio, Salazar tinha tomado o poder, tinha assumido a pasta da Defesa, tinha demitido o Botelho Moniz, tinha demitido o Costa Gomes, tinha demitido o Ministro do Exército, [Fernando Rosas – O Almeida Fernandes.] o Almeida Fernandes, que era um homem de grande dignidade também e tinha substituído os comandantes das regiões, os comandantes da Guarda Republicana, etc.
As memórias do brigadeiro Pezarat Correia, em conversa com Fernando Rosas, continuam na próxima semana.
Fizeram este programa Henrique Soares, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
“ERA UMA VEZ UM MILENIO”. Em tempo de mudança, a história do século XX.

(Programa transmitido na Antena 2 no dia 1 de Janeiro de 1999)


2ª Parte
Pezarat Correia - [...] mobilização que ia sob o lema de que vamos defender as vidas das pessoas, dos brancos, dos pretos, dos mulatos, das mulheres das crianças, dos velhos, enfim, aqueles ‘slogans’ da altura, mas eu não deixei... Ainda, recentemente, um amigo meu me lembrou que eu já estava mobilizado para Moçambique e encontrei-me com ele, ele era civil, era um rapaz amigo meu, mas civil. Encontrámo-nos no Rossio e ele lembra-se perfeitamente de eu já nessa altura, claramente, ter manifestado as minhas muito poucas esperanças em que a guerra colonial fosse uma, enfim, uma solução para... Depois tínhamos marcado também e em mim as palavras do Costa Gomes, na altura, quando tinha sido demitido de Secretário de Estado do Exército e que faz aquela carta aberta ao Diário Popular e em que ele diz que a solução para o problema de Angola não é uma solução militar mas sim uma solução política e nem todos conseguiram ler aquilo, mas, enfim, aqueles que estávamos mais, já na altura, mais abertos a estes problemas já compreendemos onde é que o Costa Gomes...
Fernando Rosas – Exacto. Vai-se iniciar então um ciclo da sua vida de comissões, de comissões permanentes.
Pezarat Correia - Eu posso dizer-lhe que a partir daí de 61 eu estive em Angola, perdão em Moçambique.
Fernando Rosas - Mas ainda não havia guerra em Moçambique?
Pezarat Correia - Não. Entretanto venho para Portugal, estou cinco meses em Portugal e volto para Moçambique, na altura em que começa a guerra. Depois saio de Moçambique e sou mobilizado directamente para Angola porque a minha segunda comissão em Moçambique tinha sido uma comissão voluntária, portanto era como se não contasse, era como se tivesse aqui e eu saio então de Moçambique e estou mobilizado directamente para Angola, vou para o norte de Angola, já em 1966, a guerra estava em curso. Depois acabo a comissão de Angola em 68, venho para Portugal, faço o curso para major, sou promovido a major. Onze meses depois de ter chegado de Angola sou mobilizado para a Guiné, num batalhão para a Guiné. Venho da Guiné em 1971 e nessa altura estou um ano e meio em Portugal e sou mobilizado novamente para Angola onde estava no 25 de Abril.
Fernando Rosas - O senhor, o senhor brigadeiro era oficial de infantaria, se bem me lembro, mas comandava tropas no terreno ou estava na...
Pezarat Correia - Olhe eu, a minha vida foi assim. Estive na Índia a primeira comissão no comando de um pelotão, portanto dento de uma companhia, a comandar tropas. Depois em 61 fui para Moçambique a comandar uma companhia, também isolada no mato. Depois faço uma segunda comissão que é a tal comissão civil em que estive a comandar a polícia da Beira, depois vou comandar uma companhia para Angola e depois promovido a major já fui oficial de operações num batalhão também no mato e na minha última comissão em Angola de 71, perdão, de 73 a 75, estive como, no leste de Angola, como responsável pelas forças auxiliares, os catangueses e os GE e tal. Portanto, nunca estive no quartel general, tive sempre, ou melhor, nessa última comissão estava no Luso, responsável pelos auxiliares, era adstrito ao Quartel General, mas não era oficial do Quartel General.
Fernando Rosas - Teve no leste de Angola interveniência nos contactos com a UNITA para a...
Pezarat Correia - Não, não tive, mas tive, digamos, no reflexo desses contactos. Isto é, os contactos com a UNITA são conduzidos a partir da zona militar leste na altura em que era comandante da zona militar leste o general Bettencourt Rodrigues e a sua equipa e era comandante chefe em Angola o general Costa Gomes e quando eu chego a Angola em 1973, o general Bettencourt Rodrigues tinha acabado de ser substituído pelo general Abel Barroso Hipólito e quando eu chego ao leste estava em vigor a ‘operação Madeira’. Portanto a zona que tinha sido atribuída como uma zona de não conflito e como uma zona de livre circulação da UNITA, que é uma zona do Lungo, a sul do caminho de ferro, estava perfeitamente definida e não havia operações militares para aquela zona. A UNITA tinha, enfim, colaborado com as Forças Armadas Portuguesas, na altura não só oferecendo resistência à penetração por aquela zona do MPLA particularmente que era quem actuava naquela zona onde a UNITA estava, mas também à FNLA, já fora da zona deles, mas perto ainda do caminho de ferro. A UNITA dava informações que eram muito úteis às forças portuguesas sobre a localização das bases do MPLA e da FNLA e de tal maneira que o general Bettencourt Rodrigues conseguiu, com essa neutralização da UNITA e o apoio que a UNITA foi fornecendo, conseguiu praticamente reduzir, isto é, eliminar todas as bases da FNLA e do MPLA na zona leste dentro do território de Angola e eles continuaram então nas suas zonas de apoio as suas bases na Zâmbia e no Zaire, na zona leste do Zaire, mas todas as bases no interior foram anuladas. Entretanto, como eu lhe ia dizendo...
Fernando Rosas – Desculpe só dizer-lhe, e os catangueses, que papel é que tinham?
Pezarat Correia - Já vamos falar nisso. Tiveram um papel muito importante. Mas só para lhe dizer que, entretanto, o general Barroso Hipólito substitui o general Bettencourt Rodrigues e o general Barroso Hipólito defronta-se um pouco com esta situação que é um general que não tem nenhuma guerra para ganhar naquela altura. E o que é certo é que o general Barroso Hipólito nunca aceitou o acordo com a UNITA que foi encontrar estabelecido. Para ele dizia, tinha a frase dele: ‘Para mim são todos terroristas! Não há cá diferenças entre a UNITA e os outros!’ E a verdade é que começou a haver, a UNITA também começou a sentir-se mais insegura porque também deixou de ter o seu interlocutor do lado de lá e começou a haver alguns incidentes. A UNITA fez alguns incidentes fora da zona, do limite que estava demarcado e em Janeiro de 1974 o comando da zona militar leste desencadeia a operação chamada ‘operação Castor’ em que procurou eliminar a UNITA dentro da sua área, portanto, rompeu-se o acordo. Isto foi a salvação da UNITA porque a UNITA estava completamente marginalizada quer pela OUA, quer por todos os países africanos e pela FNLA e o MPLA.
Fernando Rosas - Enquanto força combatente.
Pezarat Correia - E quando se dá o 25 de Abril, a UNITA era um movimento em relação ao qual havia operações militares mais volumosas o que permitiu que a UNITA viesse reivindicar o seu papel de movimento de libertação. É curioso assinalar isto. Mas então os catangueses, os catangueses o que eram? Os catangueses tinham sido os antigos gendarmes catangueses do Tchombé que quando o Tchmbé foi derrotado no Catanga fugiram para Angola e foram acolhidos em vários, não só os catangueses gendarmes como muita população daquela zona e foram recolhidos ali no leste em três campos de acolhimento, digamos, de refugiados. Depois criou-se uma situação que era esta. Os catangueses, os gendarmes catangueses, estavam refugiados em Angola com o argumento de que se tinham de manter preparados para ir combater o regime de Mobuto e recuperar, digamos, a sua pátria e que eles até levavam um pouco mais longe. Isto agora até podemos fazer a comparação com o que se passa no Kosovo. Eles já não lutavam só pela libertação do Catanga, mas sim pela libertação do Congo, do Zaire, na altura, na sua totalidade do domínio do Mobuto. Como eles diziam, dizia o general Nataniel que era lá o comandante dos catangueses que, enfim, com quem eu me entendia permanentemente porque eu era o responsável do exército português junto deles e que ele dizia que era preciso ir combater o ‘comuniste’ Mobuto. Bom, que era para entrar na nossa terminologia também. Bom, e dentro deste argumento de que era preciso manterem-se preparados para poderem, no momento oportuno, ir combater, eles receberam instrução militar em Angola e então foram constituídas dezasseis companhias.
Fernando Rosa - Era uma tropa de elite no Congo?
Pezarat Correia - Eu não sei se era uma tropa de elite no Congo até porque muitos daqueles que depois nós formámos já nem eram os iniciais porque depois, repare, naquelas ambiguidades africanas e naquelas fronteiras artificialmente traçadas entre comunidades, entre tribos e entre raças, depois eu estava perfeitamente convencido que dentro dos campos de catangueses, como eles recebiam apoios e recebiam dinheiro e recebiam mantimentos...
Fernando Rosas - Havia muita gente.
Pezarat Correia - Havia muita gente que era angolana e que até estavam integrados nas unidades dos cantangueses. Agora, os catangueses foram formados dezasseis companhias. Inicialmente tinham, eram comandadas por eles, os seus subalternos, os seus sargentos, etc. e as suas praças. Armados por nós e participando em operações connosco e algumas dessas companhias tinham instrução de Comandos. Eram companhias de Comandos, com instrução de Comandos de tal maneira que em determinada altura os catangueses constituíam, talvez, a força de intervenção mais poderosa que toda a zona militar leste tinha em seu poder. Enfim, a zona militar leste estava dividida em vários sectores, cada um deles comandados pelo seu brigadeiro e os campos de refugiados estavam dispersos por sectores diferentes e então aquilo era assim. Nos campos de refugiados estavam as companhias de catangueses com os seus familiares, etc. e as várias companhias iam fazendo destacamentos mensais junto de batalhões portugueses e durante esse mês estavam em operações permanentes. Além disso para operações de maior envergadura o comandante da zona militar leste podia ir aos campos requisitar outras companhias além daquelas que estavam nos outros batalhões para actuarem como forças de intervenção, digamos assim. De maneira que os catangueses tiveram um papel muito importante ali. Claro que quando se chegou ao 25 de Abril, os catangueses ficaram numa situação um pouco inquieta, insegura.
Fernando Rosas - O que é que lhes vai acontecer?
Pezarat Correia - O que é que vai acontecer. Isto é um problema que nós e eu próprio coloquei na altura como responsável que era por eles, mas eu, na altura, depois saio do Luso porque, enfim, fui escolhido pelos meus camaradas e vim para Luanda lá para, enfim, responsável principal pela organização do MFA. [Fernando Rosas - Já lá chegaremos.] Já lá chegaremos. Mas então ficou um adjunto meu a tomar, enfim, responsável lá pelos catangueses e é curiosíssimo quando vou despedir-me do general Nataniel, lá ao campo onde ele estava nessa altura, e ele dizer-lhe vocês tenham confiança, nós temos que encontrar uma situação, uma solução para vocês porque estavam receosos da independência, acordos com o Zaire e provável, hipotética, expatriação e nessa altura estou, achei um piadão. Estou a ver o Nataniel a falar às suas tropas e a transmitir esta prova de confiança e a dizer: ‘Sim, porque nós temos que continuar a pensar que o nosso inimigo é o fascista Mobuto!’ Bom, mas isto é apenas uma anedota, mas que é verdadeira. Bom, mas então e nós ficámos preocupados. A situação resolveu-se naturalmente. Como? Havia três partidos em Angola, como sabe, a FNLA, a UNITA, o MPLA. Eles com a FNLA nunca se poderiam aliar, a FNLA era, por tabela, os seus adversários principais porque eram os aliados do Mobuto, a UNITA eram aqueles com quem eles tinham estado, permanentemente, em guerra ali na zona militar leste, principalmente nos últimos meses, de maneira que o seu refúgio natural foi aliarem-se ao MPLA e os catangueses que, hipoteticamente, até pelo seu posicionamento, pelo seu passivo da sua actuação que estavam a lutar contra, ao lado das forças portuguesas contra os movimentos independentistas de Angola acabaram por ser, digamos, aliados talvez do movimento de libertação que era aquele que mais consequentemente lutava contra nós e depois passa-se aqui uma coisa muito interessante. Nós lá chegaremos, vou saltar aqui no tempo, mas vem muito a propósito. Em determinada altura, como sabe, há em Angola ainda antes do acordo de Alvôr, pelo menos duas tentativas da minoria branca de fazer um ‘putsch’ contra-revolucionário em Angola e um dos ‘putsch’ falha, em grande parte, porque um indivíduo que estava ligado aos golpistas e que tinha sido militar, tinha estado no leste e sabia da questão dos catangueses, sabia que estava ali uma força importante, sabia da instabilidade em que aqueles indivíduos estavam e então pensaram. Bem, uma força importante com que a gente deve contar, pode contar, são os catangueses e resolveram contactar os catangueses. Quem é que vão contactar? Esqueceram-se de uma coisa fundamental. É que eu tinha sido responsável dos catangueses e eu era uma das peças a abater e eles quem é que vão contactar, o militar que na altura estava como responsável pelos catangueses que tinha sido meu adjunto e que era um homem ligado a nós, ao MFA. Resultado, assim que ele foi contactado veio dizer-nos o que é que se estava a passar e foi uma das formas através da qual nós conseguimos detectar e controlar previamente esse golpe.
Fernando Rosas - Como é que chega ao seu conhecimento a movimentação dos capitães? Está em Angola, como é que a coisa chega lá, como é que aparece o MFA em Angola?
Pezarat Correia - Olhe, eu quando chego, eu quando chego a Angola vou, eu chego a Angola em Maio de 73 e estava em marcha aqui em Portugal o Congresso dos Combatentes e nas vésperas de eu ter embarcado para Angola, reunimo-nos num almoço, é curioso tínhamos ido.
Fernando Rosas – Vai para Angola com que posto?
Pezarat Correia - Como major, major antigo. Já tinha feito uma comissão como major na Guiné antes disso. Nós tínhamos ido ao aeroporto esperar o general Spínola que vinha da Guiné. Havia um grupo que tinha estado na Guiné e que nós estávamos a acompanhar aquela evolução do general Spínola. Havia os spinolistas convictos, havia os outros, entre os quais eu me integrava que, aderentes a este grupo, pensávamos que a agitação que o general Spínola e a contestação que o general Spínola estava a criar que era favorável, favorável para as nossas teses, enfim, antigos dos tempos da MMI. De maneira que nós tínhamos esse núcleo de apoio até para mostrar uma certa força. Isto é, quando o general Spínola chegava ao aeroporto ter lá um grupo grande de militares fardados à espera dele e tal como medida de manifestação de força, mas eu estava em véspera de embarcar para Angola, fomos esperar o general Spínola e depois viemos almoçar. Exactamente os três, o Miguel, o Fabião e eu, os três que tínhamos estado na Guiné ao mesmo tempo também, nessa altura. Portanto, fomos recuperar esse nosso período, digamos, de cumplicidade dum tempo do curso de capitão em 1959 e estávamos a almoçar exactamente a discutir o problema do Congresso dos Combatentes. O que é que nós devíamos fazer em termo de tomar uma atitude, uma posição contra o Congresso dos Combatentes. O processo ia-se desenvolver e eu fui encarregado, por esses meus dois camaradas e eles como porta voz de outros, de dinamizar em Angola um grupo grande que pudesse apoiar a contestação ao Congresso dos Combatentes. De maneira que eu vou nesta minha última comissão para Angola já com uma missão também conspirativa. Bem, acontece que eu chego a Angola, chego a Luanda, estive algum tempo em Luanda, estive algum tempo em Luanda, enfim, a tomar contacto com as novas funções que eu ia assumir, lá no leste, os catangueses que era uma missão nova para mim, etc. de tal maneira que eu chego ao Luso, hoje Luena que era na altura a cidade do Luso e eu chego ao Luena por volta, salvo erro, no dia 1 de Junho, ou 30 de Maio ou 1 de Junho. 30 de Maio, talvez e quando chego ao Luso tinha uma carta do Fabião a mandar-me o texto do telegrama que deveria ser enviado para contestar o Congresso dos Combatentes e para eu recolher assinaturas só que o Congresso dos Combatentes começava no dia seguinte. Isto é, o meu atraso, a minha presença em Luanda desencontrou-me com a carta. Bem, eu recebo aquela carta e digo: ‘Bom, não há dúvida nenhuma que a minha primeira missão aqui vai ter que fazer aqui uma conspiração’. E eu vejo quem são os meus camaradas que estão ali no Luso na altura, selecciono três que me mereciam confiança e logo no dia da minha chegada reuno-me com eles e disse-lhes: ‘Está-se a passar isto assim, assim, assim, é preciso que Angola não fique de fora disto. Eu não tive tempo de contactar ninguém em Luanda porque não tinha ainda recebido a carta do Fabião, mas pelo nós, se vocês estiverem de acordo, eu subscrevo um telegrama em nome de nós os quatro e mando para Luanda e assim para Lisboa’. E assim foi. Os três concordaram comigo, era o Figueira, era o Passos Ramos, era o Stelo, concordaram comigo, e nós quatro, portanto eu mandei o telegrama subscrito pelos quatro e mandei para o Fabião para dar a nossa aderência à contestação ao Congresso dos Combatentes. Portanto, isto é a minha chegada. Entretanto, é interessante há um camarada que ainda no outro dia, um camarada que depois teve muito envolvido aqui no 25 de Abril, mas que na altura estava pouco desperto para as questões e ele diz-me assim: ‘Pá, chegas lá ao Luso e a primeira conversa que nós tivemos, eu fiquei parvo contigo porque tu a primeira que tu me dizes é assim. Então mas tu não vês, pá, que esta terra é deles, deles eu falava em relação ao pretos, que nós estamos aqui, que estamos aqui a mais. E aquilo para mim foi como que uma nata que tu me tivesses... e depois, dizia-me ele, olha é curioso que depois do 25 de Abril eu ultrapassei-te rapidamente pela esquerda. Bom, de qualquer forma, ele estava lá um bocado desterrado para o Luso e em Setembro de 73, eu estava na altura nesta comissão há três ou quatro meses, eu venho a Luanda gozar o meu mês de férias e quando venho a Luanda, estou na messe e apercebi-me por conversas de capitães e tal, entre os capitães que havia uma movimentação. Apercebi-me. Não disse nada a ninguém e às tantas soube também por estas conversas que ia haver uma reunião nessa noite num hotel na baixa de Luanda dos capitães. De maneira que eu não disse nada, acabei de jantar e apareci no hotel. Eles viram-me aparecer, era o único major presente, eram tudo capitães, eu era o único major presente, olharam para mim com alguma desconfiança, alguma surpresa e eu perguntei: ‘Eu sei que vocês vão reunir-se, sei que vocês vão debater questões interessantes, eu pergunto-vos posso participar?’ Disseram-me que sim e como bons militares que eram, como eu era o único major presente, deram-me logo a presidência da mesa. Decorreu a reunião, a reunião foi de dia , estava-se na altura no Movimento dos Capitães, ainda não se tinha dado o salto contra o decreto. De maneira que era, fazer o ponto da situação, leitura da correspondência vinda de Portugal, leitura de correspondência a mandar para a comissão coordenadora em Portugal, o que é que estava a passar, que atitudes é que se deviam tomar e foi-se discutindo, discutindo, discutindo e eu sempre calado lá na presidência da mesa. Em determinada altura, quando aquilo já estava quase a acabar, eu disse que gostava também de fazer uma intervenção porque uma das coisas que se falava naquela altura, que estava muito em voga, sobre a questão dos militares era a questão do prestígio das forças armadas, porque o prestígio, porque esta coisa dos milicianos passarem à frente desprestigiam os capitães e que ao fim e ao cabo nós temos uma determinada formação que eles não têm e tal. Peço a palavra e disse: ‘Vocês, como sabem, eu estou a assistir, convidaram-me para estar aqui, eu estou com muito gosto a assistir aqui ao debate das vossas questões que não me afectam pessoalmente, enfim, eu já sou major, este problema afecta os capitães, no entanto, eu estou solidário convosco. Acho que vocês têm razão nas vossas contestações, mas eu gostava de introduzir aqui uma questão diferente. Vocês falam aqui muito de prestígio das forças armadas e eu gostava que vocês não tivessem ilusões’. Eu fiz esta intervenção um pouco cautelosa, um pouco a medo. ‘Gostava que não tivessem ilusões, o prestígio das forças armadas em Portugal não se recupera enquanto as forças armadas não mostrarem ao povo português que se demarcam dum regime do qual elas são suporte. Portanto, o problema é um problema político’. Para minha surpresa, esta minha intervenção teve um óptimo acolhimento entre a generalidade dos capitães. Houve logo a seguir mais duas ou três intervenções já com tonalidade política. Claro que isto passa-se para aí em 20 de Setembro, numa altura em que em Portugal o próprio Movimento dos Capitães ainda está muito corporativizado. Claro que já tinha, houve o problema do Congresso dos Combatentes já tinha tido uma tónica política, já havia movimentação à volta do Spínola, mas de qualquer maneira isto foi um bocado atrevido e principalmente porque eu não sabia o acolhimento que ia ter para minha surpresa e agradável surpresa teve um acolhimento extremamente favorável. Bem, a partir dali na semana seguinte houve uma nova reunião onde houve, digamos, um passo que no qual Angola até foi pioneiro em relação ao conjunto do Movimento em todas as colónias. Aliás, há uma coisa ainda hoje, um homem que você conhece bem, que é um estudioso destes assuntos, o Carlos Santos Pereira, esteve a falar comigo e que é seu aluno, ou foi seu aluno e que me disse que está interessado em fazer um estudo sobre o que foi a movimentação, o Movimento dos Capitães nas colónias que é uma coisa que está mal estudado e que é interessante de se saber. Bom, na semana seguinte há uma nova reunião em que eu apareço e onde já aparecem onze oficiais superiores. Portanto, eu tinha conseguido a partir dali mobilizar vários camaradas meus também majores e é nessa reunião em que são apresentados os pedidos de demissão individuais dos oficiais do Quadro Permanente, isso Angola aí é pioneiro, em que ficaram todos na mão dum responsável e em que, depois teve reflexo também em Moçambique, na Guiné e em Portugal e que já eram umas centenas e em que no caso de aquele problema não ser resolvido a contente era umas centenas de oficiais nas frentes de combate que pediam a sua demissão de oficial do exército. É declaradamente uma forma de pressão. Entretanto, elege-se a comissão coordenadora em Angola que era só constituída por oficiais que estavam em Luanda. Eu regresso ao Luso onde fui-me mantendo em contacto, fui procurando dinamizar este movimento no Luso com algum sucesso. Fui fazendo reuniões com os oficiais, o movimento foi-se alargando, fui mantendo o meu contacto com Luanda e, entretanto, o tempo passa-se e eu sou desagradavelmente surpreendido pelo 16 de Fevereiro, pelo 16 de Março.
Fernando Rosas – Entretanto, também em Angola, a coisa tinha evoluído para a politização um não?
Pezarat Correia - Tinha evoluído mas mal. Inclusivamente em Angola houve um retrocesso no Movimento dos Capitães porque em determinada altura há alguma desmobilização em Luanda e eu não acompanhei muito isso porque estava no Luso, é eleita uma nova comissão coordenadora e essa comissão coordenadora é uma comissão que não é muito receptiva à politização do Movimento. Tem pouco contacto com a politização do Movimento em Portugal. De tal maneira que até da comissão faziam parte alguns oficiais daqueles que faziam repetidas comissões em Angola, portanto estavam muito ligados aos sectores dos colonos de Angola e até às tantas um papel que é um papel negativo do Movimento em Angola, do Movimento dos Capitães em que chega a defender a constituição de um exército privativo, de forças privativas em Angola e estava muito preocupado com o rearmamento, com a actualização do armamento, de tal maneira que alguns oficiais com quem eu ia contactando, que eram meus conhecidos do tempo do MMI daqui, em Portugal, e que eu procurava aliciar para o Movimento mostraram-se muito pouco receptivos ao caminho que o Movimento estava a ter. Eu tinha aqui em Lisboa o contacto do Fabião com quem me ia escrevendo, ia tendo conhecimento do avanço político, mas eu também não tinha delegação para poder, digamos alargar muito este conhecimento, porque nós em Angola nem sequer tínhamos necessidade, nem vantagem nenhuma em saber do avanço que o Movimento estava a ter. Era uma célula clandestina e que havia que manter a clandestinidade. Eu ia tendo algum conhecimento, mas sem delegação para o poder difundir. Eles aqui diziam-me: ‘O que é que preciso é que vocês, na altura em que isto se der, estejam atentos para controlar aí a situação’. De maneira que o 16 de Março apanha-me um bocado de surpresa. Eu estava no leste quando tive conhecimento daquilo, entro imediatamente em contacto com o Fabião e o Fabião a resposta que me dá é desmobilizadora. O Fabião, entretanto tinha sido transferido para Braga, também como que destacado para Braga e o Fabião diz-me: ‘Olha, eu perdi algum contacto também com o Movimento e não sei bem agora o que é que as coisas estão a passar.’ Entretanto, escrevi lá em Angola para um outro camarada que estava num outro batalhão no mato e em que lhe dizia: ‘É pá, temos que fazer qualquer coisa. Então agora temos os nossos camaradas, os nossos companheiros presos em Portugal’. Eu na altura ainda pensava que o 16 de Março que era o 25 de Abril que eu estava à espera.
Fernando Rosas – Exactamente.
Na próxima semana transmitiremos a terceira parte do depoimento do brigadeiro Pezarat Correia em conversa com Fernando Rosas.
Fizeram este programa, Ricardo Olsen, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.

(Programa gravado da Antena 2 no dia 8 de Janeiro de 1999)

3ª Parte
Continuamos hoje a conversa com o brigadeiro Pezarat Correia. Como sempre a acompanhar-nos está Fernando Rosas.
Pezarat Correia - Até que veio o 25 de Abril e o 25 de Abril apanha-me também de surpresa. Apanha-me de surpresa no leste. Curiosamente nem sequer estou no Luso. Eu tinha ido nesse dia visitar algumas das minhas unidades auxiliares ali para aquela região do Bié, de Silva Porto e tal. Eu tinha ido e tinha depois saído do Bié e tinha ido para o mato visitar umas unidades e quando regresso de avião, aterro na pista de Silva Porto e eu normalmente quando ficava lá em Silva Porto, na altura, agora o Cuito, não é, ficava sempre em casa de um camarada meu que tinha lá casa no Cuito e que era um homem também de oposição e com ele estava em contacto permanente, o Valentim Tavares Galhardo, um homem que ainda foi, depois do 25 de Abril, efemeramente, ainda esteve à frente da televisão e eu estava em casa dele e no dia, repare, é na véspera do 25 de Abril que o Galhardo recebe, mandado