ERA UMA VEZ UM MILÉNIO
Entrevista com Carlos Fabião e Fernando Rosas
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”
Por Henrique Soares, Adelaide Marques, Maria Pereira, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
Carlos Fabião - [...] e o tenente-coronel Firmino Miguel.
Fernando Rosas - E então...
Carlos Fabião - A nossa ideia depois de estudar todas as hipóteses, a nossa ideia consistiu em irmos transformar o general Spínola num ídolo, portanto projectar, vender a imagem dele, agora usando os termos modernos. Portanto, projectá-lo no panorama nacional de tal maneira que o governo se visse obrigado quando ele acabasse a comissão, a dar-lhe um lugar de importância. Uma vez nesse lugar de importância, ele iria falar com os seus homens de confiança e fazia um golpe palaciano. Subia as escadas, ia ao Marcelo. Gostámos muito deste bocadinho, já não precisamos do seu sacrifício, vá-se embora.
Fernando Rosas - E essa ideia do golpe palaciano era assumida, era clara ou vocês, era isso que estava já na vossa mente logo em 72.
Carlos Fabião - Isto, esta coisa que eu disse, este projecto, foi o projecto de sempre do grupo spinolista que não tinha neste momento pouco ou nada tinha a ver. Pouco ou nada não é bem assim, tinha relações sempre com o grupo dos capitães, mas...
Fernando Rosas - Esse projecto de golpe palaciano, o general Spínola estava ao corrente disso.
Carlos Fabião - Estava, estava ao corrente.
Fernando Rosas - Estava de acordo? Conversava convosco sobre isso?
Carlos Fabião - Sim. Sem se comprometer, sem se comprometer muito. E repare que isto é interessante pela seguinte razão. O marechal Spínola tentou todos os processos para ganhar a guerra. Paralelamente com este, ele tentou ganhá-la também e chegou à conclusão de que não se conseguiria ganhar. Aliás, ele tem em muitos dos livros que ele publicou, há um que tem uma frase para mim lapidar que é que uma guerra subversiva nunca está definitivamente ganha que era um ponto de vista que ele sempre... mas não deixou de ir a Conacri ver se ganhava militarmente a guerra, não deixou de ocupar áreas libertadas na tentativa de aumentar o seu poder negocial. Depois é preciso também ver. O general Spínola tudo passava depois por um diálogo dele. Como sabe ele depois namorou o Amilcar Cabral durante muito tempo, ofereceu-lhe o lugar de secretário. [Fernando Rosas – Exacto.] Portanto ele tinha sempre a esperança, mas para dialogar tinha que ter força. Como sabe, não vale a pena dialogar, isso também aprendi depois, não vale a pena dialogar sem força porque não se consegue nada. É necessário ter um mínimo e ele tinha já mais do que esse mínimo. Tinha arranjado uma força relativamente boa, tinha grandes apoios aqui já em Portugal, muita gente que eu vi depois na Guiné, coisas absolutamente comprovativas do apoio que ele tinha. Por exemplo, o ministro da Marinha foi passar férias à Guiné com ele, [Fernando Rosas – O almirante Crespo.] O almirante Crespo. Um dos Melos, agora já não me lembro se era o José Manuel ou o Jorge foram também à Guiné conversar com eles. O Queirós Pereira foi passar as férias de Carnaval à Guiné para se distrair. Portanto, havia à volta dele um grupo de indivíduos que o apoiavam. O Champalimaud com quem ele tinha tido problemas também o apoiava e já numa ligação mais complicada porque havia ressentimentos passados, mas de qualquer maneira e então depois do 25 de Abril o Champalimaud pôs-se à disposição e eu considero que foi um dos grandes erros da revolução foi não ter aproveitado a boa vontade inicial do...
Fernando Rosas - E diga-me uma coisa, esses planos do Spínola no sentido de uma negociação com o PAIGC chocam com a oposição do Governo de Lisboa?
Carlos Fabião - Bom, aquilo ao princípio até pensaria que não porque o projecto, o Spínola lança não sei agora aqui, não posso já e ninguém se calhar poderá dizer da sinceridade ou não do Spínola. O Spínola a certa altura começa a ter o discurso, um discurso que é o discurso do Senghor, isto é, o Senghor quando foi forçado a levar o Senegal para a independência, o Senghor tinha pretendido primeiro negociar uma tese diferente de auto-determinação para poder preparar os quadros e a nação, mas os acontecimentos históricos, e o senhor é um estudioso, sabe isso muito bem, precipitam-se e não há depois travão possível. Como é que se poderia dizer, por exemplo, a Cabo Verde esperem aí mais dez anos que ficam independentes. Não era possível conseguir a independência. Portanto, o projecto avançava. Então o Spínola começou a namorar as teses federativas do Senghor que o Senghor tinha aplicado e o Senghor começa-se a prender e a gostar e a apreciar aquele general português que defendia as suas teses e então elabora um projecto que é o projecto Senghor que o senhor conhece. Não vale a pena estar aqui... [Fernando Rosas -- Não refira para os nossos ouvintes, para terem uma ideia do que é que era o projecto Senghor.] O projecto Senghor começava por um cessar fogo imediato ao qual se seguiriam dez anos de conversações. Durante esses dez anos de conversações o país iria caminhando para uma forma de governo que se desejasse e ao fim de dez anos iria para a independência total, com uma auto-determinação, para uma confederação, aquilo que o povo guineense desejasse.
Fernando Rosas - Como é que o PAIGC reagia ao projecto Senghor?
Carlos Fabião - Aqui agora há uma parte que eu não tenho provas nenhumas, portanto vou-lhe dizer a minha ideia. Há uma parte que sim, há uma parte que não. Em qualquer organização deste tipo há sempre uma linha, digamos uma linha forte ligada ao governamental e uma linha de oposição. Sempre. E portanto eu penso que a ideia que eu tive na altura foi que no momento em que... Ah, estamos a andar já muito depressa. Lisboa apoiou, de entrada, esta estratégia Senghor. Curiosamente só havia de nós um que punha dúvidas nisto tudo que era o João Bruno que dizia assim: - “Vocês não vão fazer nada porque o Governo de Lisboa não vai aceitar coisa nenhuma e na altura da verdade vamos a ver.” Assim aconteceu realmente. O Marcelo nunca acreditou que o Spínola entrasse em contactos e que tivesse o projecto. Ah, o projecto acontece o seguinte. O Senghor tem aquele projecto e apresenta-o, por portas e travessas, apresenta-o ao Spínola e o Spínola acha muito bem e concorda em fazer um encontro dos dois no Senegal. Fomos ao Senegal, eu também fui, fomos ao Senegal conversar com o Senghor. Eu ia mascarado com uma coisa muito má, ia à paisana como se fosse um pide. E portanto lá houve as conversações e o Spínola vem entusiasmadíssimo.
Fernando Rosas – Foi uma viagem secreta de qualquer modo.
Carlos Fabião - Uma viagem secreta. Veio entusiasmadíssimo. Houve duas. Olhe agora não sou capaz de encaixar, mas houve duas viagens ao Senegal. Uma primeira em que foi apresentado o projecto e a segunda foi dizer que sim e o Spínola vem Lisboa para falar com o Marcelo e o Marcelo tinha apoiado aquilo até então, retira-lhe todo o apoio.
Fernando Rosas – Dá-lhe um banho de água fria.
Carlos Fabião - Dizendo-lhe que na Guiné admitia-se uma derrota militar, nunca uma cedência política e isto há uma cena que o Spínola...
Fernando Rosas - Pode mais ou menos dizer no tempo quando essa resposta do Marcelo Caetano. Estamos em que ano?
Carlos Fabião - Maio de 72 ou 73, creio que foi Maio de 72. Repare que isto é tão ridículo, tão ridículo que dois anos depois, depois de nos negarem e de nos impedirem, dois depois vão a Londres, oh tio, oh tio aceitar qualquer condição para fazer a paz.
Fernando Rosas – Claro, e directamente com o PAIGC.
Carlos Fabião – Exactamente e ao mesmo tempo mandou-se aquele embaixador, que não me lembro agora o nome, a Madrid para negociar as outras duas porque se deixou chegar a uma situação já muitíssimo má.
Fernando Rosas - As outras duas está-se a referir...
Carlos Fabião - Angola e Moçambique.
Fernando Rosas - Angola e Moçambique.
Carlos Fabião - Agora não me lembro o nome dele. A Visão é que trouxe [Fernando Rosas – Exacto.] uns apontamentos sobre isto. Então essa ideia interessante porque o Marcelo diz isto ao Spínola. Você comande na Guiné uma derrota militar, não aceite uma cedência política e o Spínola estremeceu muito. E o Marcelo virou-se para ele e disse assim: - Eu compreendo o senhor general, a indignação do senhor general porque é um militar e não sei quê e não sei quê. Não, a minha indignação não é militar, a minha indignação é como português. O Marcelo engoliu. Depois, é claro, o Spínola até tinha os apontamentos de tudo isto porque a gente depois, isto era uma conversa que nós queríamos ter na nossa posse e não assistimos e o Spínola escreve uma carta, uma carta preparada por nós, cuidadosamente, escreve uma carta ao Marcelo Caetano a dizer que tinha ido a Lisboa, tinha ficado muito magoado com o que ele tinha dito, com aquela coisa que ele tinha dito.
Fernando Rosas - Já depois de regressar à Guiné.
Carlos Fabião – Já depois de regressar. Era a ver se a gente ficava com um documento que autenticasse esta conversa, que esse documento existe, não sei onde está, mas existe e então começa a falar com ele nestes mesmos termos. O senhor aceitou uma cedência, uma derrota militar, não uma cedência política. Aquilo que me disse, não sei quê, não sei quê e o Marcelo responde-lhe dizendo: - Sim senhor, eu disse-lhe isso o que disse que aceitava e volto a dizer que aceito uma derrota militar e não uma cedência. É claro aqui nós pagámos a notícia pelos militares e os militares estavam muito, como sabe, estavam muito traumatizados com a questão da Índia. Eles não tiveram responsabilidade nenhuma e foi-lhes assacada. A gente começou a dizer: - Olhem as Índias todas que vão ser formadas à nossa custa. E foi portanto, se a situação já não era brilhante no relacionamento do Governo/Forças Armadas, as Forças Armadas cá a parte de baixo, porque, como sabe, no nosso país um tipo chegava a general, calçava umas pantufas, ficava numa bela varanda e pronto.
Fernando Rosas - Como é que avaliava nesse período, fins de 72-73, qual era o diagnóstico da situação militar na Guiné.
Carlos Fabião - A situação na Guiné estava muito má e não valia a pena fazer grandes esforços porque o que acontecia na realidade era isto. O que interessava cair, a nível internacional, e tinha interesse era Portugal, as colónias iriam por arrastamento. Portanto, todo o esforço militar, inclusive no Partido Comunista, era desequilibrar a estrutura da retaguarda. Podia repetir a pergunta porque eu afastei-me um bocado.
Fernando Rosas - Qual era o diagnóstico da situação militar.
Carlos Fabião - O que é que acontecia. Acontecia que sempre que, nós estávamos a fazer uma guerra com o inimigo e se o inimigo... se a gente puxava de uma faca, eles puxavam de uma espada. Se a gente puxava de uma espingarda, eles puxavam de uma metralhadora, se a gente puxava de não sei quê, eles puxavam sempre, iam dando sempre uma... na balança da situação...
Fernando Rosas - Havia superioridade militar da parte da guerrilha.
Carlos Fabião - A guerrilha não tinha superioridade militar que eles até eram relativamente poucos, tinham era material muitíssimo sofisticado, muitíssimo melhor que o nosso. Nós a certa altura no nosso projecto conseguimos fazer tudo o que queríamos porque tínhamos um domínio absoluto dos ares e esse domínio dos ares permitia-nos que nós fossemos a todos os sítios da Guiné onde quiséssemos. Eu dizia ao Spínola, eu vou a qualquer sítio, era verdade e eu ele como era aventureiro até fazia coisas deste género. Por exemplo, isto aqui é a Guiné, ia de helicóptero, pousa aqui e pousava, dava duas voltas e vínhamos embora. Era preciso um azar muito grande estar ali um tipo logo com uma arma na mão no sítio onde ele baixava. Portanto, é daquelas bravatas que a gente pode fazer que agrada aos soldados. Os soldados, eh pá, a coragem dele! E afinal de contas é uma coragem muito relativa porque, só por azar, como eu digo, é que estava lá alguém.
Fernando Rosas - Mas isso acabou com os SAM, esse domínio aéreo.
Carlos Fabião - Exactamente. Quando apareceu o Strela, acabou o domínio aéreo.
Fernando Rosas – Mísseis terra-ar
Carlos Fabião - E ainda mais é que o rendimento do material começou-se a estragar porque os aviões não podiam já voar em rasos mortos, os aviões tinham que ir lá para cima para alturas de dois e três mil metros onde já o Strela não chegava ou então tinham que vir mesmo vinte metros de altura ou coisa assim no género para a arma não chegar a armar-se. Como sabe, primeiro quando ela sai, depois tem que se armar a espoleta para bater senão aquilo está inerte... Portanto tudo isto, desgaste de material, desorientação moral dos soldados que passaram a viver numa situação muito mais difícil. Tudo aquilo contribuía para um desequilíbrio que se ia dando e que caminharia para...
Fernando Rosas - Está-me a dizer portanto que na Guiné, no núcleo à volta do general Spínola cria-se uma consciência da necessidade de mudar politicamente o Governo em Lisboa, bastante antes de surgir o Movimento dos Capitães.
Carlos Fabião - Sim, antes, muito antes do Movimento dos Capitães, nós tínhamos já feito o tal, apoiados no projecto do Senghor tínhamos feito esta preparação do...
Fernando Rosas - É para isso que veio o general Spínola para Lisboa, é por isso que ele abandona a Guiné. Ele vem, ele regressa com o intuito de ter alguma...
Carlos Fabião - Não, ele sai da Guiné num barrete que enfiou e que nós lhe fartámos de dizer para não o fazer. Ele pensou sempre na continuação do nosso projecto que vinha para Lisboa, davam-lhe um bom lugar e...
Fernando Rosas - Deram-lhe efectivamente.
Carlos Fabião – Pois, numa prateleira. [Fernando Rosas - Sim, uma prateleira dourada.] A gente pensava que ele ia para aquele lugar e teria capacidade de colocar os homens dele. Nem um ele conseguiu colocar. [Fernando Rosas - Sim, sim.] E era ele e o Costa Gomes que estavam lá, os dois. Portanto, não conseguiram nada neste aspecto.
Fernando Rosas - Deixe-me fazer-lhe uma pergunta a esse propósito. Como é que explica que a nível dos altos comandos das Forças Armadas praticamente só houvesse dois oficiais generais que tinham uma consciência crítica em relação à situação da guerra.
Carlos Fabião - Pergunta bem, mas eu não lhe sei dizer.
Fernando Rosas - A sua opinião, quer dizer...
Carlos Fabião - Eu penso que a maioria deles, a maioria deles visavam uma posição de chefia ou de comando elevada e uma boa situação aqui na metrópole e tinham que viver dois anos ou três anos, consoante, de inferno para conseguirem esse lugar. É uma das hipóteses que eu ponho, é o próprio general Betencourt Rodrigues que aceitou a Guiné na situação em que ninguém aceitava, mas ele tinha ambições, primeiro nós e portanto teria de passar por aquela prova de fogo para ir mais longe. Já diferente é a leitura que eu faço, por exemplo, do general Kaulza em que eu acho, nalguns coisas não compreendo que um homem inteligente defenda pontos de vista e acredite em coisas que não são possíveis de acreditar, que se vanglorie de coisas que fez que só foram, como hei-de dizer, ajudaram a enterrar mais depressa a situação. Esse não o compreende, mas sei também que há à frente no destino dele uma ambição política muitíssimo grande que ele não esconde sequer. O Betencourt foi aquilo que eu olhe disse também. Ele devia querer uma outra posição, aquilo era uma posição de transição. O marechal Spínola ficou na Guiné dois anos a mais para permitir que fosse eleito o Presidente da República Américo Tomás. Porquê? Se quiser aqui no meio desta desorganização. Agora volto outra vez porque no meio desta conspiração deste grupo a certa altura juntou-se o Sá Carneiro.
Fernando Rosas - Estavam em contacto com o Sá Carneiro.
Carlos Fabião - A certa altura estava ligado ao grupo. O que é que acontece. Sá Carneiro ainda é parente do Azeredo, o Azeredo veio passar umas férias à metrópole e quando chegou vinha com uma proposta do Sá Carneiro ao general Spínola e a proposta era o seguinte. No ano seguinte ia haver eleições para o Presidente da República e se ele Spínola se candidatasse no seio da Acção Popular, como é que ela se chama? [Fernando Rosas - Acção Nacional Popular.] da Acção Nacional Popular, se ele se candidatasse no seio, ele garantia que eles não podiam ter, não tinham cara perante a nação de propor como propuseram porque não havia mais ninguém o Américo Tomás. Um general prestigiado [...] a nossa necessidade e o prestígio que a gente lhe deu e os jornalistas que trabalharam connosco e todo o ‘mise en scène’ que se criou em volta do Spínola aí ia jogar de maneira que... Como é que a Acção Nacional Popular podia dizer à nação: - Não temos ninguém, o almirante vai fazer força. Até ao nível deles, diziam: - Não, não, nós temos um general de confiança, um homem novo, com novas ideias, etc. e portanto, ele dizia o seguinte: - Nós vamos propor, eu consigo e já tinha, ele já tinha, no outro lado da Acção. É claro, a ala liberal votava toda no Spínola, mas no outro lado, já havia umas quantas pessoas também que já estavam aborrecidos por aquilo acaba por ser uma vergonha para todo um Governo sempre que o Américo abre a boca, não é. [Fernando Rosas – Claro.] Havia também indivíduos que já estavam cansados daquela figura venerável, não é, que eles chamavam e então há essa proposta. O Spínola não aceita a proposta e à noite.
Fernando Rosas - Não aceita porquê?
Carlos Fabião - Não aceita, aceita. Vamos lá a ver. À noite. O Azeredo tinha feito férias, trouxe a proposta para o Spínola... Ah, à noite, nós muitas vezes, quase sempre, íamos ao palácio beber café com o Spínola, portanto. Na varanda de trás, ele não tinha visitas, juntava-se lá, era o nosso clube e o Spínola diz assim: - O Azeredo está maluco, veio com uma proposta da metrópole, vocês não querem saber. E espalha a proposta. Quando ele acaba de fazer a proposta, o Firmino Miguel levanta-se: - Meu general isto é uma coisa óptima. Eu não acho que isto seja como o senhor diz uma coisa... O senhor vai aceitar isto, tem que aceitar isto. E o Miguel naquele momento assume uma posição e arrasta-nos a nós todos para pressionarmos o general e vem cá à metrópole um de nós, Dias de Lima, falar com o Sá Carneiro e aceitar a proposta e...
Fernando Rosas - Portanto, o Spínola teve uma atitude de certa aceitação inicial.
Carlos Fabião - Sim, sim, sim. Mas agora aqui surge um pequeno pormenor que não é tão pequeno como isso que é a figura do Spínola. O Spínola é um vencedor, é um campeão, não é uma figura e o projecto do Sá Carneiro, na realidade, pelo que me apercebi, eu estou convencido que foi isso, porque joga tudo lógico com as pedras. O que o Sá Carneiro queria era afastar o almirante e só tinha uma hipótese, não podia afastar o almirante e pôr o Spínola, até porque havia já atritos graves a nível de Governo e então o recado que o Sá Carneiro dá é este: - O senhor general concorre, mas o... Ah, nesta situação que estava criada, esqueci-me de dizer isto, esta situação estava criada, o Marcelo Caetano estava como reserva, isto é, se eles não conseguissem ter pedra nenhuma, avançava o Marcelo Caetano para a Presidência. Qual era a ideia do Sá Carneiro apareceu, era com o perigo, com o espantalho Spínola fazer com que o Governo desistisse do almirante e pusesse o Marcelo Caetano, não podia meter mais ninguém, não havia mais ninguém. Se pensar um bocado, veja, não havia mais ninguém nessa altura e então o Sá carneiro diz assim, se o Marcelo avançar e se instalar então o senhor general desista imediatamente da sua candidatura, retira-se da cena política. Isto não se pode dizer. Não se pode dizer. Vais agora e a meio da corrida sais porque ele não saía a meio da corrida. É aqui que falha o projecto e falha doutra maneira. É que o Venâncio Deslandes tirou-lhe o tapete também e para ele era muito importante, é uma figura que ele respeitava muito, que falava sempre e perguntas. Já do tempo de Angola, como sabe, eles também começaram a haver movimentos de ordem vária. Por exemplo, eu estive envolvido num em Angola, o Manuel Alegre esteve envolvido noutro. Portanto, houve muita gente envolvida em Angola. O Salazar resolveu a questão com facilidade. Demitiu aquela gente toda, pôs os generais a andar e aquilo acalmou logo, mas então nesta o Spínola retira-se e ao retirar-se deixou o Sá Carneiro pendurado.
Fernando Rosas - E portanto o Marcelo Caetano também não aceitou e ele próprio ser candidato.
Carlos Fabião - Não precisava já. Já não precisava porque está vendo. A ideia que eu tinha do Marcelo Caetano, o Marcelo Caetano nesta situação era obrigado a avançar e depois teria que ir a um dos seus delfins, todos nos interessavam. Por exemplo, o João Salgueiro que era um homem como se sabe sempre ouvido por toda a gente, enfim, um desse teria que avançar para primeiro ministro e o grupo que na altura vivia pendurado no almirante, o almirante não era tão fraco como se imagina, o almirante tinha força real porque tinha à volta dele toda uma ‘entourage’ significativa da nação portuguesa. Generais, banqueiros, sei lá o quê. Os industriais não muito porque o negócio das colónias estava-se a perder e se passasse para os movimentos independentistas, mais tarde ou mais cedo, eles voltavam a tomar conta daquilo como aliás se tem visto, não é. [Fernando Rosas – Claro.] Mas portanto há aqui este momento e há a desistência do Spínola. Na altura eles exigiram outra coisa do Spínola, foi que o Spínola aceitasse ficar na Guiné para eles dizerem, a Guiné é zona de tensão que nos merece prioridade, o general ficou na Guiné e nós fartámos de dizer, eu pessoalmente, e os outros todos: - Não aceite, não aceite, vá-se embora, não faça [...], mas ele também tinha uma certa admiração pelo Marcelo Caetano, o Marcelo Caetano fartou-se de enganá-lo, mas isso é outra conversa. Uma delas que eu nunca mais me esqueço quando a gente estava à espera de um lugar bom para o Spínola, ele vem à metrópole e tal. Sempre que o Spínola vinha à metrópole, a gente dizia, ele já não volta, é preso, entretanto, porque ele nos discursos, vale a pena ler os livros. Não sei se leu alguma vez os livros dele, mas os discursos dele é cada vez mais atrevido. Vai avançando ali. O que legitima um Governo é a aceitação dos governados. Uma frase utilizada dele. Portanto, ele falava uma linguagem que ninguém daqui gostava e então pediram que ele ficasse lá para não levantar problemas. Ele acedeu a ficar lá. Aquilo foi muito mau sob todos os aspectos. Primeiro porque ele ficou lá e segundo porque o PAIGC lançou o Strela e tudo...
Fernando Rosas - A situação militar começou-se a decompor.
Carlos Fabião - Começou a decompor-se nas mãos dele sem que ele pudesse fazer nada para o evitar.
As memórias do coronel Carlos Fabião em conversa com Fernando Rosas continuam na próxima semana.
Fizeram este programa Esmeralda Serrano, Maria dos Anjos Pinheiro e Henrique Soares.
(Programa gravado da Antena 2 no dia 29 de Janeiro de 1999)
2ª Parte
Continuamos a conversa com o coronel Carlos Fabião. Recordações dos doze anos passados em comissões na Guiné, do convívio com o general Spínola, dos contactos com o PAIGC, memórias de um homem que depois do 25 de Abril de 1974 foi Chefe do estado Maior do Exército, segunda personagem da hierarquia do Estado. A acompanhar-nos está, como habitualmente Fernando Rosas.
20 de Janeiro de 1973. Amílcar Cabral, líder do PAIGC é assassinado em Conacri. Qual o envolvimento do general Spínola neste assassinato? Com esta questão começamos o programa de hoje.
Fernando Rosas - Acha que o general Spínola teve, de alguma forma, envolvido no assassinato do Amílcar Cabral?
Carlos Fabião - Não consigo encontrar nada, nada, nada que me prove isso. Eu preocupei-me em seguir várias pistas, em falar com várias pessoas. Não consigo. Há quatro forças muito importantes que podiam tê-lo morto. Vou sempre à minha querida que foi, que eu disse ao Spínola que o governo quando lhe retirou, a ele, a capacidade de negociar com o Amílcar Cabral, condenou o Amílcar Cabral à morte porque, está a ver, o grupo de oposição dentro do Partido ganha força com aquilo. Qualquer coisa que o Amílcar Cabral tinha para oferecer àquela gente era um entendimento com Portugal e a independência da Guiné.
Fernando Rosas - O Amílcar Cabral queria negociar com o general Spínola?
Carlos Fabião - Eu creio que sim. Eu não assisti às conversas, mas eu creio que sim.
Fernando Rosas - Mas ele teve conversas com o general Spínola?
Carlos Fabião - Não, não teve.
Fernando Rosas - Directamente não teve.
Carlos Fabião - Teve sempre por intermédio do Senghor e quem deve conhecer muito bem o teor das conversas é o Nunes Barata. O Spínola tinha essa sorte. Um dos capitães da Guiné era o Nunes Barata que era um diplomata, já na altura era um diplomata. Portanto, as negociações e as conversações fizeram-se sempre não ao nível de guerrilheiros, guerreiro, mas a um nível já um pouco mais elevado, quase ao nível de Estado.
Fernando Rosas - Que era a intermediação do Senghor.
Carlos Fabião - Pois, exactamente, com o Senghor a servir de medianeiro.
Fernando Rosas - Claro e nessa altura qual é a sua teoria sobre o assassinato do Amílcar Cabral?
Carlos Fabião – Eu tenho sempre um que é o grupo dissidente do Partido. Tenho também outro que é a União Soviética porque a União Soviética defendia o princípio, que eu acho correcto, de fazer cair tudo ao mesmo tempo. Isto é caíam as colónias e caía o Governo de cá. Repare, a Guiné era um sorvedoiro de vidas, era a pior das províncias, era uma cruzada de prejuízo. A gente pagava tudo ali. Tinha. Era destruída no dia em que quiserem. Tinha um cais em T. A frase não é minha, é do Pedro Cardoso. Tinha um T que era o cais. Neste T passava 70% da economia da Guiné. Destruído o cais que não era difícil até, repare que aquilo entrava em falência absoluta.
Fernando Rosas - Acha que a morte do Amílcar Cabral prejudicou a política do Spínola para a Guiné?
Carlos Fabião - Se fosse do Spínola para a Guiné! Foi a toda a África, na minha opinião. Foi a toda a África. Era um homem, por exemplo, o Amílcar Cabral era um homem extraordinariamente culto, extraordinariamente capaz de levar as pessoas, de influenciar. Dizia-me o Zé Araújo, já falecido, que o único homem que o Agostinho Neto era teimoso que se fartava, e o único homem que ele ouvia e aceitava era o Amílcar Cabral. Ao nível de África também o Amílcar Cabral era um indivíduo ouvido, era um líder africano. [Fernando Rosas - Uma referência, claro.] Tinha grandes ligações a nós e todo o seu discurso foi sempre um discurso de entendimento connosco e nunca de ataque a nós. Ele tem aquela frase que aliás os tipos do PAIGC me disseram que ele durante a guerra disse, durante a guerra terá dito, contou-me também o Zé Araújo e outros, terá dito, Vocês hão-de ver que quando vier a paz os portugueses são os únicos indivíduos com quem a gente se vai entender. É claro ele tem muita ligação a Portugal, não é verdade. Ele estava casado com uma portuguesa. Estudou em Lisboa. [Fernando Rosas - Fez os estudos cá, etc.] Está ligado aos outros indivíduos e movimentos pela Casa dos Estudantes do Império na altura.
Fernando Rosas – Portanto, o senhor coronel regressa da Guiné antes do general Spínola voltar?
Carlos Fabião - Antes do general Spínola voltar.
Fernando Rosas - Em 73.
Carlos Fabião - Em 73.
Fernando Rosas - 73 é um ano importante porque começam a surgir outras movimentações no seio do corpo militar, nomeadamente contra o Congresso dos Combatentes.
Carlos Fabião - Já tinha havido um que escapa a toda a gente que foi a alteração do estatuto do oficial do exército. O estatuto antigo pelo qual nós entrámos permitia quando um tipo chegasse a oficial superior saísse do exército, uma grande e significativa fatia de militares, quando chegava aquela altura, pedia para sair e ia-se embora. Mas não podiam, não havia gente, não tinham oficiais como sabe e até fui eu que criei o sistema, criei os oficiais-proveta, os capitães-provetas, como sabe, um grupo de rapazes que aparece. O capitão é o posto mais importante na guerra subversiva, o mais desembaraço de todos era retirado e era feito capitão. Tipos com seis meses de tropa e 23 anos de idade [Fernando Rosas - E milicianos, claro.] Eram milicianos, pois, portanto aquilo... Já não me lembra o que estava a falar.
Fernando Rosas - O estatuto dos oficiais.
Carlos Fabião – O estatuto dos oficiais. Esse estatuto dos oficiais, o Marcelo, o Betencourt que é um bocado insensato disse assim: - Eu resolvo o problema, eles falam muito, mas se eu não autorizar a saída, não sai ninguém e deixou sair cinco, parece que foram cinco. Na vez seguinte houve setenta e tal que pediram para sair.
Fernando Rosas - Estamos a falar de oficiais superiores, portanto. Quê?
Carlos Fabião - De capitão para cima.
Fernando Rosas - De capitão para cima. [Carlos Fabião - Perante estes...] Isso era um suicídio.
Carlos Fabião - Perante estes números, ele resolveu acabar com a lei que regulava a saída.
Fernando Rosas - Mas isso não teve reacção.
Carlos Fabião - Houve uma série de indivíduos que se demitiram na altura que ele não aceitou. Eu lembro-me até de uma cena engraçada com o Azeredo. O Azeredo era um tipo bestialmente irreverente, como o senhor teve ocasião de ver. Ele tinha, na altura própria, ele tinha metido o papel para sair, não lhe foi autorizado. Quando saiu o novo estatuto, o novo estatuto acabava com as provas e ele exigiu fazer as provas porque era do antigo estatuto.
Fernando Rosas – Claro. O Congresso dos Combatentes, no entanto, era o primeiro sinal assim visível duma reacção conjugada, digamos assim.
Carlos Fabião - É e é também outra coisa até certo ponto complicada quando a gente a vai observar. Aquilo podia ser o género de uma guerra civil.
Fernando Rosas - Como assim?
Carlos Fabião - Porque havia um grupo de indivíduos e se vir, se ler um dia as folhas de estratégia do general Kaulza, ele verifica que o inimigo mais perigoso que há é o inimigo interno. O inimigo interno é aquele que trabalha para desagregar o Portugal do Minho ao Algarve. Esse Congresso dos Combatentes, não sei se conheceu as bandeiras dele. É “As pátrias não se negoceiam”, “Alerta, há turras escondidos atrás do altar de Deus”, enfim sobretudo frases, “Portugal não se discute, defende-se!”
Fernando Rosas – Exacto. Donde é que vem a ideia de fazer o Congresso?
Carlos Fabião - Eu não lhe posso dizer donde é que veio a ideia porque o Congresso é a manifestação lógica do retorno às bandeiras. Portanto, eu penso que as pessoas Câmara Pina e companhia dos homens do retorno à bandeira que devem ter sido os homens que lançaram o Congresso.
Fernando Rosas - Pode explicar as nossos ouvintes o que é isso do retorno à bandeira? Que ideia é essa?
Carlos Fabião - O retorno à bandeira é no momento em que o país começa a ter problemas gravíssimos em toda a frente há um grupo de oficiais e civis importantes da situação que acham que se deve voltar ao purismo do 28 de Maio e criam um movimento a que deram o nome de «Retorno à Bandeira».
Fernando Rosas - E acha que o Congresso estava ligado a essa iniciativa?
Carlos Fabião - Sim, estou convencido que é a primeira manifestação pública do «Retorno à Bandeira», o Congresso.
Fernando Rosas – Portanto, fala do general Câmara Pina, fala de mais quem, quem eram os homens que...
Carlos Fabião - Já não me lembro, já não me lembro.
Fernando Rosas - E porque é que há uma reacção ao Congresso da parte da oficialidade, da oficialidade intermédia, digamos assim.
Carlos Fabião - A oficialidade já estava cansadíssima porque eu venho buscar uma frase do Nietzsche que gosto muito em que ele diz no Zaratustra na parte dos militares, diz o seguinte: - “Ao homem, ao militar, ou ao homem de guerra, um termo desses, soa melhor tu deves em vez de eu quero” e repare que é jogando com estes conceitos que o Governo se mantém. Na realidade o que governava era o ‘eu quero’. O Salazar quis, o Marcelo quis, toda a gente queria e para calar os militares é aquele dever ‘Tu deves defender a pátria’. Mas estes trocadilhos, estas frases, como sabe perfeitamente, têm uma duração. A certa altura as pessoas começam a puxar pela cabeça. A situação estava-se a agravar, a agravar, a agravar e os oficiais superiores esperavam os dois ou três para subir lá para cima e já não ter nada a ver com aquilo. Logo que se libertavam de capitão, até porque o major já não vai ao mato, ou vai pouco, ou só vai se quer. Portanto, aquilo começou, os capitães começaram a ver o buraco para onde iam, sem solução e viam que todas as tentativas que eram feitas eram sempre destruídas, Não havia nada, iam ser culpados, iam ser crucificados por uma coisa com a qual, aliás, eles já não concordavam.
Fernando Rosas - Quando é que tem então ideia de dar alguma resposta à iniciativa do Congresso? Donde é que partiu a iniciativa da demarcação?
Carlos Fabião - É claro que se o Congresso fosse para diante e aquelas coisas todas fossem para diante, a gente arranjava um sarilho de todo o tamanho porque as medidas que iriam cair sobre a PIDE eram medidas duríssimas, duma dureza muitíssimo grande porque naquela altura já se dizia que o Marcelo era o responsável porque era um fraco e porque era não sei quê e não sei o mais quê porque com uma linha dura as coisas não teriam ido. A linha dura, como sabe, nunca resultou em parte nenhuma. Portanto é sempre... Faz uma série de mortos para trás e a situação é irreversível normalmente a partir daí. Mas enfim, eles, havia um grupo forte que queria isso e foi fazer. Eu por acaso tenho, não sei se as pessoas têm, eles mandaram-me cartas. Aquilo custou muito dinheiro, aquela brincadeira. Eles mandavam cartas para casa de nós com um argumento saudosista. ‘Desde quando é que não voltas a estar com o teu camarada de pelotão, com o qual viveste durante dois anos os melhores anos da tua vida, servindo a Pátria, não sei quê, não sei quê...’ É um discurso deste tipo e então havia, nós éramos delegados em todos os distritos e puseram uma coisa mais grave. Mandavam a cada um de nós uma ficha de inscrição para a gente assinar e mandar que era para eles para o ano que vem saber com quem é que contavam. Como imagina... é que agora a mobilização maciça de indivíduos e estavam a preparar uma organização. Eu às vzees salto de um lado para o outro. Eles estavam a preparar aquela organização, eu quando estudei os papeis, para mim era uma organização tipicamente mussolínica. Era uma reunião, toda aquela gente, uma missa por alma dos combatentes mortos, uma almoçarada e no fim da almoçarada a leitura das conclusões do projecto. [Fernando Rosas – Claro.] O senhor está a ver como é que estariam no fim de uma almoçarada aqueles duzentos, ou trezentos ou quatrocentos, ou quinhentos ou mil que já não viam os amigos desde o tempo de trás. Aquilo cheirava àquelas manifestações do tempo do adore e eu: ‘Eh pá temos que travar esta brincadeira’.
Fernando Rosas - Nós quem? Quem era o nós que queriam...
Carlos Fabião - Era o grupo que cercava o Spínola, acrescidos com outros, por exemplo com o Batista, com o Ramos que morreu, como Marcelino da Mata que foi o homem que assinou, com o Rebordão de Brito que assinou também e já morreu também.
Fernando Rosas - Ainda não há movimento de capitães nem nada que se pareça nessa altura. Mas a criação dessa primeira rede de contacto vai ajudar a surgir depois o Movimento dos Capitães.
Carlos Fabião - Quer dizer, o que dá força e ânimo a isto é que nós fazemos o Congresso e depois vamos recolher assinaturas. Pusemos num papel que nós, os verdadeiros combatentes, não aceitamos as conclusões tiradas no Congresso, sejam quais forem por não darmos representatividade aos indivíduos que constituíam a organização. Depois era preciso recolher assinaturas e começámos a recolher assinaturas e ao contrário do que a gente imaginava porque até então era sagrado o militar não tomar atitudes colectivas, quer dizer, ele actuava isoladamente e nunca apoiado em camaradas, nunca apoiado com outro. [Fernando Rosas – Claro.] E com a nossa grande surpresa 400 oficiais assinaram o manifesto. Repare que este é um número muito importante porque Portugal era um quarto do tecido de oficiais porque os outros estão em Angola, estão em Moçambique e estão em Portugal uns quantos e a gente conseguiu 400 assinaturas. Era um número significativo, um número importante. A primeira pessoa, agora vamos, na minha visão, penso que é a que está certa, dizer o que acontece. Acontece que a primeira pessoa que teve noção de que aquilo era um manancial que não se podia perder foi o Vasco Lourenço que apareceu nessa altura. Eu não o conhecia. O Vasco Lourenço é um fulano que o Eanes conhecia porque era da terra do Eanes, o Eanes fazia parte de nós também, do grupo dos spinolistas, claro, era um dos homens importantes do grupo do Spínola.
Fernando Rosas - E portanto, digamos que esse manancial a que se refere é reactivado quando se lança o movimento para reagir aos decretos.
Carlos Fabião – Sim, mas deixe dizer-lhe outra coisa. O Vasco Lourenço foi ele que quase recolheu as 400 assinaturas. Foi ele que se mexeu, foi ele que andou e depois disse ao Eanes que não se podia perder aquilo, tinha que se ir para diante. O Vasco aí, depois nessa altura, nessa altura mais ou menos, o Vasco fala muito nisso, ele vai para uma reunião, estava-se a discutir, já na altura dos decretos. Não, adiantei-me sem querer. Então o Eanes imaginou a criação duma associação de antigos alunos da Escola do Exército como há em França a Associação dos Antigos Alunos de Saint Ciro, nesses moldes e destinava-se essa organização, destinava-se, oficialmente, a ajudar e a dar apoio às mulheres e filhos dos nossos camaradas que estavam na guerra, aqueles que estivessem cá, enquanto estivessem cá iriam olhando pelas necessidades daqueles que estivessem a combater, sobretudo em relação ao relacionamento dos familiares, etc. e portanto avançou com esta hipótese, com este documento. Este documento na realidade não se destinava a isto que é a sua finalidade, mas destinava-se a manter informados todos os oficiais espalhados por todas as colónias. A gente por ali ia sabendo o que é que se passava aqui, o que é que se passava acolá e há primeira reunião e o Vasco Lourenço só fala nos decretos. Entretanto, saíram os decretos e o Vasco Lourenço só fala nos decretos e mais os decretos, os decretos, não sei quê e eu cheguei-me ao pé dele e disse ao Vasco Lourenço: ‘Oh Vasco, você, eu estou farto de decretos, pá, eu vou-me embora e quando quiserem passar a tiros digam onde é que eu hei-de estar e com que arma.’ E fui-me embora.
Fernando Rosas - Portanto o Fabião não tinha confiança nenhuma na resposta aos decretos e nessa outra parte...
Carlos Fabião - Não, não tinha, mas o Vasco Lourenço disse-me a mim, garantia, por isso é que eu digo, disse-me a mim. Quem mexeu isto tudo foi ele na realidade, depois houve muita gente que chegou, houve outros tipos que fizeram as obras de operações. Tenham feito o que fizeram, mas o buldogue, quem agarrou a presa e não largou mais foi o Vasco Lourenço, não é assim? Eu sinto, dizia ele a mim, eu sinto que vai ser com os decretos a gente consegue mobilizar esta gente e derrubá-los. É um bocado corporativismo, mas a gente sabe que é, mas também tem que se ver a mentalidade das pessoas, o ano em que estamos e o que é que está...
Fernando Rosas - Quando é que o Carlos Fabião regressa, retoma o contacto com a movimentação já mais...
Carlos Fabião - Eu depois quando cá cheguei estive nessa reunião lá de cima, fui com o Eanes, o Eanes é que sabia. Encontrámo-nos no Terreiro do Paço. Ele vinha lá da Madre de Deus e eu estava no Terreiro do Paço, com o célebre carro azul, Wolkswagen azul, parou, eu entrei, viemos a conversar. Ele entretanto veio a dizer: ‘O Vasco, aquele rapaz da minha terra, aquele de que te falei, não se consegue impedir, ele está a falar, a mexer, está uma organização lá em cima, estavam três organizações, uma delas é de direita o mais possível. A gente vai fazer isso tudo, muito bem, mas não se discute política. Não se discute. ‘Está bem. Não se discute política’.
Fernando Rosas - Portanto, o Carlos Fabião era um homem que já estava razoavelmente politizado nessa altura.
Carlos Fabião - Sim, mais ou menos, mais ou menos. Fazia parte dum terceto que nos íamos mais ou menos preparando politicamente. Um deles continuou, os outros não, mas por vários motivos. Por outras palavras, era eu, o Pezarat e o Firmino Miguel. Somos do mesmo curso, da mesma turma e portanto...
Fernando Rosas - E o Pezarat até com experiência política anteriores, etc.
Carlos Fabião - Vou dizer que o Pezarat foi o que continuou. Eu praticamente deixei-me de políticas, o Firmino Miguel morreu e o Pezarat continua e neste momento é um ‘expert’ como já viu, em problemas... Até porque ele faz relacionamentos que eu já não sou capaz de fazer. No Congo aconteceu em mil novecentos e não sei quantos, aquilo, como sabe, tinha influência por fulano e não sei quê.
Fernando Rosas - Regressando agora ao Movimento dos Capitães, o Carlos Fabião participa naquelas reuniões no Alentejo.
Carlos Fabião - Não, não tive em nenhuma delas.
Fernando Rosas - Quando é que, qual é a reunião a que vem?
Carlos Fabião - Olhe eu estive numas quantas reuniões, mas foram reuniões sem importância. [Fernando Rosas - Mais pequenas.] Daquelas de teor mais pequeno e depois houve aquele golpe que sabe, do golpe do Kaulza.
Fernando Rosas - Do Kaulza. Ia perguntar-lhe isso. O Carlos Fabião é sabido que na Academia foi quem denunciou publicamente a preparação desse golpe. Como é que isso se passou?
Carlos Fabião - O Vasco Lourenço, o Movimento dos Capitães a certa altura foi abordado por um representante do Kaulza. Esse representante do Kaulza foi fazer propaganda do Kaulza, dizendo que era um homem formidável, em 61 tinha salvo a Pátria. Foi quando deu cabo da Pátria, mas isso é outra questão. Tinha salvo a Pátria contra os traidores, não sei quê, não sei quê, e começou a desequilibrar rapazes que não sabiam quem era o chefe e começaram a pensar que seria ele. O Vasco assustou-se com isso e veio contar-me o que se passava e eu disse-lhe: ‘Eh pá, vamos ver. Vamos ver’. Há uma... um dia estou em casa e recebo um telefonema do Vasco Lourenço que diz-me assim: ‘Preciso falar urgentemente consigo’. Marcámos o ponto de encontro numa estação de comboios que já não existe ali em Pedrouços. Eu vim, trocámos de roupa. Eu quero falar imediatamente com o Spínola. Então vamos. Chegámos à praça Afonso de Albuquerque, telefonámos para casa do Spínola, ele estava a tomar banho. A senhora disse que ele estava a tomar banho e eu disse: ‘A gente precisava de falar urgentemente com ele. A senhora foi ao gabinete: ‘Olhe, ele diz que quando acabar o banho vai para a Cova da Moura, que estejam lá à porta e falem com ele’. Assim foi, o Spínola chegou, olhou. Ele e o Vasco Lourenço não se davam bem, já se tinham dado mal... Olhou assim de revés para o nosso amigo Vasco Lourenço e perguntou o que é que se passava e o Vasco Lourenço contou tudo. E o Spínola disse: ‘Estou com vocês, daqui a catorze dias, daqui a duas semanas eu vou tomar posse do cargo de Vice-Comandante Chefe, peço a vocês todos que estejam muito atentos ao meu discurso’. E o Vasco com aquela... toda. ‘Oh, oh, está a brincar, então eu estou a dizer-lhe duma revolução que está para rebentar de um momento para o outro e o senhor diz para estar com atenção ao seu discurso daqui a catorze dias! Nem pense!’ O Spínola foi-se embora e o Vasco ficou, bestialmente, abatido com isto. Eu disse ao Vasco: ‘Então vamos fazer uma coisa. Você vai avisar os camaradas todos do que se está a passar e eu vou publicamente confessar isso que é para levantar uma...’ E depois disse ao Vasco uma coisa e o Vasco é que depois lembrou. Disse ao Vasco: ‘Há duas coisas que vão acontecer. Primeiro é que ninguém vai acreditar que não foi o Spínola que me mandou dizer isto e a segunda é que o Spínola há-de ficar muito zangado comigo por eu fazer uma coisa sem lhe ter pedido’. No dia seguinte, no dia seguinte deu-se aquela bronca toda, deu-se quilo tudo. Eu li um documento aqui há tempos do Kaulza e é das poucas coisas, é que não fui preso, não tive nada contra mim porque fiz um grande jeito ao Marcelo e ao grupo do Marcelo. Liquidei o grupo que os ia papar.
Fernando Rosas – Exactamente. E acha que esse grupo de extrema-direita do Kaulza podia, tinha força operacional para tomar o poder.
Carlos Fabião - Eu penso que sim, eu penso que sim. Aquilo naquela altura era muito difícil fazer qualquer coisa. Como o senhor sabe a gente estava infiltrado por todos os lados.
Fernando Rosas – Claro. Mas o próprio general Spínola terá sido abordado pelos generais à volta do Kaulza. Ele não deveria estar tão longe do que se estava a passar como isso.
Carlos Fabião – Sim, mas é que o general tem a célebre frase quando o Kaulza o convidou para fazer um golpe de estado, ele diz assim: ‘Hei-de fazer um, mas com os meus rapazes!’ Havia ali já situações irreversíveis porque o Kaulza tinha chamado a ele a cara do homem duro do nazi e o Spínola tinha chamado a si, falsa ou verdadeira, a expressão do general do povo português.
Fernando Rosas – Claro. O general Spínola estava ao corrente do que se passava nas reuniões, daquilo que vai ser o Movimento das Forças Armadas? Acompanhava a discussão, a...
Carlos Fabião - Eu penso que ele estava porque até esta altura que eu lhe disse, eu ia todas as noites a casa dele e depois falavam com o Vasco ou outro tipo qualquer e ia sabendo e comunicando as coisas e até há uma coisa muito engraçada que uns dias antes de eu ter ido para Braga, o Spínola, entretanto, sempre na tentativa de negociação com o Caetano e um dia entro lá, são dois pontos interessantes, um dia eu entro na casa do general, ele está sentado à mesa e ele começa assim: ‘Tá, tá, tá, tá. Vamos para os tiros’. Foi um dos pontos e outro foi um dia em que eu estive com ele até às três da manhã, à espera que o viessem prender porque queriam mesmo prendê-lo, o grupo e o almirante e aquela gente toda e foi o Marcelo Caetano que conseguiu aí nessa altura...
Fernando Rosas - Antes ou depois da publicação do livro?
Carlos Fabião - Penso que antes da publicação do livro.
Na próxima semana continuamos com as memórias do coronel Carlos Fabião, em conversa com Fernando Rosas.
Fizeram este programa Esmeralda Serrano, Maria dos Anjos Pinheiro e Adelaide Marques.
(Programa gravado da Antena 2 no dia 5 de Fevereiro de 1999)
3ª Parte
Continuamos com o depoimento do coronel Carlos Fabião. No anterior programa Carlos Fabião recordou as tentativas de negociação entre o general Spínola e o professor Marcelo Caetano, o Congresso dos Combatentes e as primeiras reuniões do Movimento das Forças Armadas. Os spinolistas e o golpe militar de 16 de Março é o tema com que iniciamos hoje o programa.
Fernando Rosas - Acha que o grupo spinolista tentou de alguma maneira no 16 de Março antecipar-se à eclosão do movimento. Acha que essa iniciativa como também já se tem apontado poderá considerar-se como uma tentativa dos spinolistas se anteciparem aos acontecimentos?
Carlos Fabião - Eu não estava cá, estava em Braga. Não vivi os acontecimentos, não sei o que é que se passou, não sei se... Penso que nem uma, nem outra são versões que me convençam. Não estou a ver nem um grupo spinolista infernalmente, fria e infernalmente, preparar o golpe puxando os camaradas para poderem subir para a frente, nem estou a ver os outros camaradas puxarem, forçarem o linchamento dos spinolistas para se verem livres deles. Naquela altura, naquela altura havia uma união muito grande entre aquela gente toda, ainda não tinham surgido os graves problemas das várias linhas em que aquilo se fraccionou, é uma verdade, e portanto eu custa-me a crer, eu acho que ali houve excesso de boa vontade da parte duns, se calhar, e houve prudência da parte dos outros porque o Bruno sai cá para fora. Ele não sai, é preso e depois eufórico, não ele é preso, ele é preso, não foi... Ele é preso porque o euforismo vem, ele tinha acabado a sua comissão, vem para cá e vinha cheio de genica e cá não era a mesma coisa. O Movimento dos Capitães tinha muita gente, mas não eram os capitães da Guiné, eram os capitães de toda uma vasta. Portanto, não haveria unidade de doutrina aí.
Fernando Rosas - Qual era a função que o Fabião ocupou já no Movimento das Forças Armadas. Quer dizer, pertenceu algum órgão, que funções é que lhe deram na conspiração, digamos assim?
Carlos Fabião - Na conspiração, na conspiração eu tive com a residência fixa em Braga até me vir embora.
Fernando Rosas - Desde quando?
Carlos Fabião - Desde princípio de Março.
Fernando Rosas - É quando o Vasco Lourenço também é...
Carlos Fabião - Na mesma altura.
Locutora – Desculpe, depois do golpe falhado, não é, das Caldas?
Carlos Fabião - Não, a gente safou-se por causa disso. É antes, é antes. Foi uma das reuniões...
Fernando Rosas - É na sequência da reunião de Óbidos em que, é a reunião em que se começa a falar a sério em fazer um levantamento militar e eles realmente colocam o Vasco Lourenço, o Melo Antunes, o Fabião, separam-nos. Mas porque o Fabião, porque não foram muitos, apesar de tudo, objecto dessa medida. Porque é que o Fabião o foram atingir a si.
Carlos Fabião - Eu penso eu meu lado morava um pide que tinha nosso ao lado e que eu penso que tenha a função de me seguir. Isso os pides e o Spínola era uma coisa giríssima porque o Spínola era um provocador. Eu ia lá com ele, depois despedia-me, ele vinha acompanhar-me até à janela e o pide, estava normalmente o pide ou encostado a um candeeiro a fingir que lia ou dentro dos carros, dum carro com dois, e o Spínola vinha à janela e dizia assim: - Oh Fabião, olhe os gajos estão... Mas a melhor de todas que eu vi um dia foi o Spínola, eu estava cá, e o Spínola vem à janela e diz assim: - Oh Fabião, diga aí ao pide que pode-se ir embora que eu vou já para a cama! Mas isto é só para ver... Desculpe, eu...
Fernando Rosas – Não, não senhor, veio a propósito saber porque é que entre os poucos oficiais que foram atingidos...
Carlos Fabião - Eu sou um infeliz, sou do Sporting e o Sporting jogava naquela noite um desafio internacional e eu fui ver o jogo. Fui ver o jogo e no dia seguinte quando fui mandado para Braga eu consegui falar com o Spínola e o Spínola foi protestar e os gajos mostraram o relatório da PIDE onde diziam que eu tinha saído às tantas horas de casa para ir à reunião. Não fui a reunião nenhuma, fui ver o jogo de futebol porque me tinham dito até na altura para eu estar afastado o mais possível para não irem procurar ligações com outras pessoas, não sei quê. [Fernando Rosas - Exactamente.] Portanto houve aquela questão e mandaram-me lá para cima.
Fernando Rosas - O Movimento tinha também contactos na PIDE?
Carlos Fabião - Eu penso que sim, eu penso que sim.
Fernando Rosas - Através do general Spínola.
Carlos Fabião - Tinha essa, o Coelho, não sei quê Coelho, que era um homem que servia o Spínola, dando informações, etc. e chegou a ser o [Fernando Rosas – O director indigitado.] Fui eu que foi levar o despacho, o Spínola fez o despacho, assinou, entregou e fui eu que fui entregar a ele, simplesmente, a Movimentação popular não permitiu, claro [Fernando Rosas – Que a PIDE subsistisse.] Que a PIDE subsistisse.
Fernando Rosas – Portanto, quando se dá o 25 de Abril propriamente dito o Fabião está longe, está em Braga.
Carlos Fabião - Em Braga.
Fernando Rosas – E depois regressa.
Carlos Fabião - O Spínola telefonou-me nessa noite e disse-me assim: - Pegue na bagagem e venha para baixo.
Fernando Rosas – Já sabia que era no dia 25 de Abril?
Carlos Fabião - Isso agora é uma história cómica. Quer que eu conte?
Fernando Rosas – Conte lá.
Carlos Fabião - A minha cunhada estava para casar e eu ia ser o padrinho e a minha mulher passava a vida a telefonar-me lá para cima para eu dizer, para eu saber. Eu estava com licença fixa, portanto, pedi ao general se podia ir a Lisboa porque tinha um assunto a tratar em Lisboa. Com aquela magnanimidade que os caracterizava: - Com certeza, você é um oficial como os outros. Está autorizado. Pronto. Obrigado. Fiquei a saber nesse dia que era um oficial como os outros. E tinha um contacto, o Corvacho estabeleceu um contacto entre mim e o grupo do Porto que também sabia para todos os oficiais de Braga que pertencia ao M