Entrevista com Eng. Manuel Begonha - MFA : Dinamização Cultural

ERA UMA VEZ UM MILÉNIO

Entrevista com Manuel Begonha
“Em tempo de mudança, a História do Século XX”

Por Henrique Soares, Fernando Humberto, José Araujo, Maria dos Anjos Pinheiro e Esmeralda Serrano.
 
Nos dois últimos programas estivemos com as memórias do Dr. Almeida Santos. Pretendíamos então iniciar as conversas com as personalidades civis que marcaram o Processo Revolucionário em Curso, processo que levou à construção da democracia em Portugal. São muitos ainda os elementos civis que queremos contactar, elementos que continuam com uma grande actividade profissional e política, o que por vezes torna difícil a sua participação neste programa, mas a história não pára. O 25 de Abril de 1974 foi feito de muitas histórias. Hoje vamos recordar uma dessas histórias, a Dinamização Cultural. Para nos recordar esses tempos está connosco o engenheiro Manuel Bacelar Beganha, então capitão-tenente, engenheiro maquinista naval. Manuel Beganha participou também activamente em todo o processo revolucionário, designadamente como membro do Conselho de Classes da Armada, da Assembleia do MFA, da Comissão Dinamizadora Central da 5ª Divisão.
Locutora - Vamos então lembrar. A 5ª Divisão, CODICE e vamos falar principalmente de dinamização cultural. Como é que foi? Como é que aconteceu? De quem é que? De quem foi a ideia?
Manuel Beganha - Bom, se nos situarmos em 24 de Abril de 74.
Locutora - Vamos recuar até lá.
Manuel Beganha - Vamos recuar até 24 de Abril. Devemos lembrar que estávamos numa guerra colonial, tínhamos uma situação em termos culturais e regionais bastante atrasada e que, eventualmente, o povo português veria nas Forças Armadas e nas forças militarizadas os agentes da repressão e os agentes ligados a uma guerra colonial. Portanto, é evidente que as pessoas em parte desconheceriam todas as acções que se iam desenvolvendo ao nível de resistência, ao nível da organização e a seguir ao 25 de Abril poderia parecer estranho que esses mesmos militares viessem liderar uma revolução com carácter completamente diferente do regime que se estaria a viver nesse momento. À medida que o tempo foi passando, viu-se que era necessário passar a explicar ao povo português, de um modo geral, o programa do MFA e, principalmente, mostrar a face real do militar português que não deixava de ser um elemento do povo e por essa razão, integrados na 5ª Divisão, constituímos…
Locutora - O que era a 5ª Divisão?
Manuel Beganha - Bom, a 5ª Divisão era uma das divisões do Estado Maior General das Forças Armadas, tinha a ver com a parte de comunicação social e exactamente a 5ª Divisão era a divisão que tinha a ver com comunicação e informação pública. Portanto, nessa 5ª Divisão resolveu constituir-se, na altura sob a chefia do então capitão-tenente Ramiro Correia, aquilo a que se veio a chamar a Comissão Dinamizadora Central que, de imediato, resolveu fazer um programa que se veio a revelar muito interessante e que nós dividimos em quatro fases. Bom, o termo dividir não estará bem aplicado. Foi a natureza dos acontecimentos que levaram a esta situação. Portanto, numa primeira fase, nós apercebemo-nos que havia inúmeras organizações de carácter cultural já estabelecidas no País. Portanto, lideradas por civis que tinham uma actividade muito intensa, quer ao nível do cineclubismo, quer ao nível do teatro, e que, após este movimento libertador, sentiam a necessidade de se começar a expandir. Evidentemente, faltavam-lhes certos apoios e faltavam-lhes meios. Por outro lado, os militares tradicionalmente estariam, na sua quadrícula, distribuídos por todo o País e sentiam a necessidade de falar com as pessoas e, como eu já disse anteriormente, de estabelecer um diálogo que tinha sido cortado por estas vicissitudes históricas que nós sabíamos. Portanto, a primeira fase foi distribuir pelo País, nas regiões militares, junto a civis que já tinham uma actividade cultural, como a Cooperativa Árvore, no Porto, como as organizações que existiam em Coimbra. Nós conhecíamos lá, por exemplo, Joaquim Namorado, na zona de Lisboa e no sul, fazer com que as pessoas que estavam ligadas à cultura e ligadas à capacidade de transformação do povo português, que era o que se pretendia, contactassem com os militares e desenvolvessem uma actividade que se chamaria de 'Dinamização Cultural'. Por outro lado, era preciso não esquecer que o Movimento se iniciou em Lisboa e ao lado de nós tínhamos a nossa vizinha Espanha que tinha ainda o franquismo no poder e havia zonas de Portugal que não se sabia exactamente qual seria a sua reacção ao que se estaria a passar em Lisboa. Portanto, era também necessário fazer uma cobertura do terreno e mostrar que os militares estariam presentes. Não estavam presentes apenas no aspecto da cultura, mas que existiam. O País era organizado e que as coisas estavam a correr normalmente. Então resolvemos fazer uma segunda fase que era a montagem de campanhas itinerantes, ou seja, na base duma unidade militar organizada, na primeira e a mais significativa foi a operação 'Nortada' dos Comandos, liderada pelo então major Jaime Neves e no sentido também de experimentar o material militar que tinham nessa altura aquelas Chaimites, fez-se uma movimentação no nordeste com as Chaimites e aproveitando pessoal ligado à cultura, grupos de teatro, projecção de filmes, etc. que pretendiam, face também à proximidade das eleições e à situação que existia de divórcio entre o hábito democrático e aquilo que o programa do MFA estabeleceria que era a parte de democratizar, entendia-se que era necessário acompanhar uma movimentação militar com outras actividades e devo dizer-lhe que assistimos a cenas realmente excepcionais nesse aspecto.
Locutora - E vamos recordar algumas.
Manuel Beganha - Vamos recordar algumas. Eu posso dizer-lhe, sem entrar propriamente em muito folclorismo. Lembro-me de um caso em Miranda do Douro e aqui quero aproveitar, já agora para fazer um parêntesis, para lhe dizer. De facto, todo este processo teve uma dinâmica imparável, uma dinâmica própria porque não só os militares se envolveram, como a esmagadora maioria dos intelectuais portugueses, a todos os níveis, de todas as artes, nos artistas plásticos, escritores [Locutora - Cantores.], cantores e uma coisa que não...
Locutora - E tudo graciosamente.
Manuel Beganha - É muito importante frisar que as pessoas nunca se moveram por interesses materiais, nunca houve, por exemplo, da parte dos militares graduações seja no que for para conseguir organizar estas campanhas. Os militares deslocavam-se sem ajudas de custo e nos sítios mais inóspitos do País ficaram a título completamente gracioso. Realmente viveu-se um momento histórico. Foi a grande aproximação entre o povo português, os seus intelectuais e os seus militares e portanto estava-lhe eu a dizer que não era hábito populações recônditas encontrarem um grupo de teatro, por exemplo. E eu lembro-me que um dos grupos que foi connosco foi a Comuna, entre muitos outros, os Bonecreiros, etc. Eu não queria estar a dizer nomes para não ser injusto para tanta gente que colaborou connosco, armaram um palco em plena aldeia à noite. A aldeia em peso foi assistir e ele caracterizou-se no palco. Foi uma coisa que nunca ninguém tinha visto e a dada altura um miúdo da assistência começou a chorar o que deixou as pessoas um bocado constrangidas porque julgavam que iam perturbar algum cerimonial que não deveria ser perturbado. O João Mota extremamente, muito pedagogicamente disse: - 'Não, não há problema nenhum, deixem a criança chorar. Ele faz parte da vida, faz parte do teatro'. Calcule qual foi a reacção das pessoas. Foi uma coisa encantadora. Portanto, houve muitos casos destes. As pessoas dialogaram, abriram-se. Lembro-me também, por exemplo, nessa fase, porque eu ainda estava a fixar nessa fase das campanhas itinerantes em Murça, em que a população também compareceu em peso numa sessão numa sala fechada e as pessoas estavam próximo do palco onde estavam os militares não falavam. Nós perguntávamos: - 'Então, mas o que é que se passou? Estavam satisfeitos com o sistema anterior?' E ninguém falava. A dada altura, um grupo de mulheres dirigiu-se para a frente da plateia e disse aos homens: - 'Então vocês que andavam sempre a protestar, a dizer que não ganhavam, que iam para a tropa e não sei quê, digam a esses senhores, pá! Digam o que é que têm a dizer!' E foram as mulheres, de facto, que fizeram para ali uma verdadeira revolução…
Locutora - Os homens estavam tímidos.
Manuel Beganha - Os homens estavam tímidos, estavam um bocado inibidos e as mulheres tiveram uma acção fabulosa, desenvolveu-se um diálogo interessantíssimo e, pronto, houve inúmeros casos deste género. Depois mais à frente podemos falar, onde se chegou à conclusão, primeiro que os militares não iam de maneira nenhuma fazer uma política de folclore, nem andar à procura de situações de miséria porque para se conhecer a miséria do povo português basta andar de eléctrico em Lisboa que é uma coisa que as pessoas sabem bem e também não iam na política de fontanário, inaugurar seja o que for. O que se pretendia, de facto, era explicar por que é que os militares estavam envolvidos na revolução, explicar o que eram eleições e os partidos políticos, explicar o que era o MFA, explicar por que é que se tinha de fazer a descolonização que nessa altura, é bom esquecer, que se estava numa fase muito importante. A partir daí chegámos à conclusão que mesmo as campanhas itinerantes tinham alguns defeitos porque, embora passasse os militares muitíssimo bem organizados como eram na altura os Comandos aquela ideia que os militares estavam todos desorganizados e que estava tudo a saque, é mentira porque os Comando deram um exemplo extraordinário de organização e tiveram um comportamento excelente. Serviu para os efeitos exactamente de dar confiança ao povo português nos militares, fazer a cobertura necessária do território e fazer as experiências que os Comandos no aspecto táctico e logístico pretenderam fazer.
Locutora - E eram sempre bem recebidos?
Manuel Beganha - Sempre bem recebidos.
Locutora - Não havia desconfianças?
Manuel Beganha - Não. Vamos lá a ver. Neste tipo de campanhas porque este tipo de campanha a que as pessoas não estavam habituadas tinham o aparato de aparecerem forças militares em zonas que normalmente nunca apareceriam, com aquela organização e acompanhadas de meios de actividade cultural, mas o que é que acontecia? O esclarecimento era natural que ficasse alguma coisa, mas quando as pessoas abandonavam o terreno, todos os agentes e respondendo à sua pergunta, já nessa altura contra-revolucionários que existiam que tinham o terreno facilitado para volta à situação anterior. Portanto, é evidente que tivemos reacções de todo o tipo. No programa do MFA e os militares foram perfeitamente claros a se caracterizarem por serem apartidários, mas não eram apolíticos porque os militares sabiam que tinham um país que era necessário desenvolver, um país que era necessário democratizar e não iam falar em questões de partidos políticos, mas iam falar que era um país novo e portanto, por exemplo, a Igreja tinha absoluta liberdade religiosa. Era um assunto perfeitamente claro, mas é evidente que muita gente na Igreja difundiu a ideia que os militares iam roubar os crucifixos, que iam roubar as pessoas, mas não se pode dizer que a Igreja teve esse comportamento, em geral. Havia pessoas isoladas. Houve de um sentido e houve de outro. Portanto, eu falo na Igreja porque é uma situação muito querida ao povo português e que nós não queríamos, de maneira nenhuma, entrar a espadeirar ninguém, nem pôr ninguém de parte, houve plena colaboração, houve muito respeito mútuo, mas como em todas as coisas, houve pessoas, até por ignorância, tentavam que as coisas voltassem ao antigamente. Bom, de maneira que numa terceira fase foi decidido fazer outro tipo de actividade que era fixar as pessoas no terreno de maneira a desenvolver embriões de tipo centros culturais. Portanto, foram destacadas pessoas no campo da saúde, no campo do teatro, no campo das artes e tentando cobrir, em colaboração com os militares das regiões militares respectivas, o máximo de área do País. Aí também houve incompreensões, também houve alguns maus resultados resultante de alguma impreparação, embora se deva dizer, entre parêntesis, que em Lisboa, na Comissão Dinamizadora Central, cada campanha era cuidadosamente preparada, não só com textos de apoio, mas procurando levar pessoas da região e também procurando fornecer aos elementos que se iriam deslocar, os elementos da cultura local, da linguagem, dos costumes para tentar que não houvesse agressões e para as pessoas perceberem que não eram, enfim, pessoas vindas de Lisboa ou vindas de fora que estavam a impor seja o que for. Era necessário haver um diálogo e as pessoas precisavam de falar uma linguagem acessível, mas é vidente que nalguns casos a impreparação, o voluntarismo também levaram a que nem tudo corresse bem, mas nós não podemos analisar a dinamização nos pequenos pormenores. Nós temos que ver é a grande situação em que nos encontrávamos e posso dizer-lhe que hoje muita da rede cultural que existe se ficou a dever aquilo que a dinamização deixou. Muita gente ligada ao teatro, ligada à cultura, ligada à música foi devida à situação que foi criada.
Locutora - E coisas mais concretas como o saneamento básico? Conservação de estadas, também?
Manuel Beganha - Exactamente. Isso era feito numa terceira fase que eu já falei e, posteriormente, na fase final. Na fase final chegou-se à conclusão que era necessário fornecer ao governo e fornecer a todas as instituições que tinham a ver com o desenvolvimento do País os elementos que se estavam a colher no terreno porque não só muitos hospitais que não tinham médicos foram, para garantir o seu funcionamento com médicos militares. Veterinários que fizeram, por exemplo, na zona da Guarda uma campanha de brucelose que fizeram inspecções a mais de 2000 animais que hoje se fala de vez em quando em brucelose. Naquela altura isso foi tudo detectado. Formaram-se cooperativas, apoiaram-se pessoas a fazer estágios. Como já lhe disse, nós não estávamos interessados em políticas de fontanário. Queríamos dar os meios e as pessoas perceberam isso e tentaram-se mobilizar alguns meios militares e posteriormente até alguns meios de algumas empresas de construção que estavam imobilizadas, tentou-se levar a maquinaria e o 'know how' dessas empresas para todo o País e algumas empresas, elas próprias, como a Guérin, organizaram-se nas suas férias para ir para o terreno ajudar as pessoas. Fizeram-se muitos parques infantis, fizeram-se muitas escolas. Nós pudemos fazer dez mil salas de aula. Portanto, o programa chegou a uma fase que abrangia o País inteiro, faziam-se relatórios detalhados de todas as necessidades da população que eram fornecidos, quisemos fazer uma rede nacional de frio, pretendia-se fazer uma rede em que houvesse capacidade de transportar os meios do interior do País para frigoríficos e dos frigoríficos seriam desenvolvidos para os portos e dos portos seriam exportados. Fez-se a ligação com os Açores porque as campanhas não se dirigiam só ao continente, digamos, porque também houve situações na Madeira, nos Açores e contactámos também vários membros do MFA. Deslocaram-se aos mais importantes centros onde havia emigração e este mesmo programa, embora, evidentemente com outros meios, foi levado para explicar às pessoas exactamente o que é que se pretendia, o que é o MFA, o que é que tinha acontecido. Portanto, a quarta fase que falou, era a tal fase da acção cívica. Portanto, que tinha a ver com a fixação no terreno, acabar com o processo de itinerância e motivar todos os militares para essa situação. Falámos muito com as forças militarizadas, falámos muito com a Polícia e com a GNR. Lembro-me perfeitamente de dizer que era preciso acabar no espírito do povo português que o militar, o polícia ou o guarda republicano era uma pessoa menos respeitável, o inimigo público, o repressor. Não era assim. Não se pode dizer às crianças: Vai-te deitar senão chamo o polícia. Portanto, essa situação pretendeu-se acabar. Tivemos gente excelente nessas forças militarizadas que acompanharam perfeitamente esta situação. Portanto, estava-lhe eu a falar na acção cívica. Outra situação interessante foi, por exemplo, numa aldeia da Beira que eu não me lembro, que havia exactamente, aí por influência do padre, uma grande polémica em relação à recepção que haveriam de dar aos militares. Eu estive presente nessa sessão em que toda a aldeia entrou nessa sala, metade dum lado, a outra metade doutro, separadas por um corredor longitudinal, no sentido do comprimento, aí de um metro e as pessoas estavam completamente separadas, umas de um lado, outras doutro. Depois começámos a falar, as pessoas foram falando. A dada altura, conseguiu-se até montar o microfone para o exterior porque as pessoas não cabiam na sala, tinham vindo de todo o lado. Acabou numa festa, matou-se um porco, o padre foi das pessoas mais animadas. Portanto, não há dúvida que havia muitos preconceitos e havia, com o aproximar das eleições, começou a pôr-se também o problema mais político do socialismo porque na altura todos os partidos eram socialistas, se bem nos lembrarmos. Portanto, não havia, realmente, ninguém que não se dissesse do socialismo. Isso fez uma certa confusão porque as pessoas diziam, tentavam conotar o MFA com os partidos políticos da esquerda. Ora nós sabemos perfeitamente que numa situação a seguir a uma revolução, que nem sequer foi sangrenta, não houve mortes, não se matou ninguém, é natural que a tendência das pessoas, ao ver que se estava numa situação colonial-fascista, era falar num sistema socialista, mas não se estava a falar em socialismo em termos partidários. Falava-se num outro tipo de sociedade. Portanto, é natural que essa preocupação das pessoas também levou a progressivos ataques e a progressivos combates à dinamização uma vez que estaria também integrada na 5ª Divisão que era um órgão que também estava muito conotado…
Locutora - Mas do próprio Movimento das Forças Armadas sentiam oposição? Havia elementos? Concretamente. O general Spínola?
Manuel Beganha - Não, o general Spínola… Havia tanta oposição que as campanhas só arrancaram em Outubro depois dele ter saído de presidente. Portanto, é evidente que o MFA era composto por gente, que são os militares. Portanto, como nós nos definimos exactamente por apartidários, havia gente que estava honestamente com o MFA e as filiações partidárias eram diferentes. Quer dizer, isso não impediu que as pessoas se dessem bem dentro do programa do MFA. Agora, quando as pessoas começaram a boicotar o programa do MFA e a tentar adulterar o programa do MFA, a dinâmica própria da revolução tratou de distinguir um pouco as águas e portanto não há dúvida que se criou uma dinâmica em que se falava muito do socialismo. Isso é verdade.
Locutora - Falou há pouco de Ramiro Correia. Portanto...
Manuel Beganha - Ah, fez bem em lembrar-me porque, acima de tudo, a dinamização cultural foi uma criação do Ramiro Correia.
Locutora - Um homem da Marinha.
Manuel Beganha - Um homem da Marinha. 
Locutora - E havia muitos elementos da Marinha?
Manuel Beganha - Um médico da Marinha. Havia muitos elementos da Marinha e não é de estranhar. Primeiro, porque o Ramiro Correia quando constituiu a Comissão Dinamizadora Central entendeu que ela devia ser composta por elementos dos três ramos, três da Marinha, três do Exército e três da Força Aérea. Aqui não se respeitou a proporção numérica que havia nos três ramos. O Ramiro era um médico naval, um homem extremamente culto que eu devo aqui homenagear, que está um pouco esquecido do povo português e mal conhecido que teve a visão e percebeu perfeitamente da necessidade dos militares se aproximarem do povo português e escreveu muito sobre isso e definiu exactamente os parâmetros essenciais, em colaboração evidentemente, com todos os ramos das Forças Armadas, mas houve de facto oposição, houve de facto oposição e ela fez-se sentir a partir da altura em que a 5ª Divisão acabou por ser extinta porque a dada altura…
Locutora - Foi depois do documento dos Nove?
Manuel Beganha - Sim. A dada altura a 5ª Divisão acabou também por desaparecermos e a Comissão Dinamizadora Central ficou com autoridade própria, dependendo directamente do Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, na altura o general Costa Gomes, e portanto nessa altura a dinamização já estava a funcionar em termos de gabinetes, de dinamização. Portanto, dividimos a actividade, tínhamos um gabinete de Saúde, de Obras Públicas, de Veterinária. Portanto, aquela fase de implantação no terreno tomou uma proporção mais forte, mas é vidente que a saída da 5ª Divisão e com todos os fenómenos que aconteceram com o aproximar do 25 de Novembro, onde as divisões no MFA já se faziam sentir, a enfraqueceram porque quando falei que a 5ª Divisão, nenhum dos seus militares tinha qualquer compensação material, em nenhum termo, mas precisavam de apoio material e técnico para desenvolver a sua actividade e portanto eu lembro-me de ter falado ainda na altura com o general Fabião para lhe pedir auxílio, mas a inevitável divisão que se verificou porque, enfim, era preciso destruir a unidade de comando, e uma vez que se destrua a unidade de comando é meio caminho andado para se perder coerência numa revolução e a 5ª Divisão primeiro e a Dinamização a seguir tinham o destino traçado. Mas estava-me a falar também dos militares da Marinha. Antes desses…
Locutora - A Marinha que esteve desde a primeira hora com a revolução.
Manuel Beganha - Sempre, sempre. A Marinha é evidente que, pela sua vocação de estar nos navios, embora tivesse fuzileiros, que colaboraram desde a primeira hora nas campanhas. Devo dizer, não só os fuzileiros, como os pára-quedistas e os Comandos que já referi sempre colaboraram em todas as campanhas que foi necessário, mostraram muito interesse nisso.
Na próxima semana continuamos com as memórias do engenheiro Manuel Beganha.
Fizeram este programa, Henrique Soares, Maria dos Anjos Pinheiro, Esmeralda Serrano e José Araújo.

(Programa transmitido na Antena 2 no dia 26 de Março de 1999)


2ª Parte
Terminamos hoje a conversa com o engenheiro Manuel Begonha. Manuel Begonha, ex-capitão-tenente, engenheiro maquinista naval e que participou activamente em todo o processo revolucionário. Há 25 anos Manuel Begonha, Faria Paulino, Jaime Neves, Otelo Saraiva de Carvalho e Ramiro Correia, entre outros, deram corpo à dinamização cultural integrada na 5ª Divisão. Entre 1974 e 1975 fizeram-se mais de 2000 sessões realizadas junto da população. Vinte e cinco anos depois vamos lembrar a Operação Nortada realizada no distrito de Viseu.
“Movimento das Forças Armadas
Dentro de alguns segundos vamos estabelecer ligação directa com a equipa de informação pública das Forças Armadas que se encontra neste momento em Viseu o salão gimnodesportivo desta cidade está iniciar-se uma sessão de esclarecimento que conta com a presença do brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho e de oficiais da Comissão Coordenadora do Programa do Movimento das Forças Armadas. Chamamos a nossa equipa em Viseu.”
(Excerto de transmissão pela rádio)
Locutora – E as palavras que vamos ouvir são de Jaime Neves e Otelo Saraiva de Carvalho.
“Eu sou o comandante do batalhão de Comandos nº 11 da Operação Nortada.
Sucintamente explico que a Operação Nortada é uma operação essencialmente militar que se destinou a culminar um fim de curso de comandos que actualmente decorre no batalhão de comandos nº 11 e além disso estamos a pôr à prova todo o material e o pessoal aqui no Continente uma vez que até hoje todos, estávamos todos voltados para o Ultramar e houve necessidade de voltar as Forças Armadas para o Continente e para o povo português.
E como tal, realizamos esta operação e escolhemos desde o nordeste transmontano passando pelas Beiras e finalizando em Santa Margarida. Como complemento desta operação temos vindo a esclarecer as populações desde as mais humildes aldeias como aconteceu no nordeste transmontado e incidindo agora nos centros populacionais mais importantes. Como disse há pouco e referi, hoje temos o prazer de ter entre nós o senhor brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, o nosso comandante adjunto que não é mais do que um militar, comandante que veio visitar as suas tropas. Além dele, estão presentes quatro oficiais do [...] que fazem parte da Comissão Coordenadora, são os senhores comandantes Guerreiro, o senhor comandante Contreiras, está o senhor major Pereira Pinto da Força Aérea, à extrema direita, o senhor capitão Vasco Lourenço ao meu lado direito e o senhor capitão Pinto Vaz na extrema esquerda. Assistem também o presidente da Comissão Central Dinamizadora das Forças Armadas, o senhor primeiro-tenente médico Ramiro Correia. Esclareço apenas para não interpretarem as palavras extremas verdadeiramente à letra. Meu brigadeiro, se me permite, acho que V. Ex.a deve ter medo das palavras, o povo de Viseu, em breve, os nossos militares também estamos ansiosos por o ouvir.”
Depois das palavras do major Neves, comandante do batalhão de comandos nº 11, as palavras do brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho.
“Com verdadeiro espírito de militância MFA e apesar das péssimas condições de tempo não nos terem permitido deslocarmo-nos até esta populosa cidade de Viseu. Saímos de Lisboa às quatro da tarde para chegar agora aqui. Não quisemos deixar de estar presente junto de vós. Sentimos que há sempre a necessidade, sempre que possível, de junto de todas as camadas do povo português levarmos a nossa mensagem, a mensagem MFA.
E é por isso que hoje aqui estamos para com a maior honestidade, a maior franqueza, olhando-vos nos olhos, nós possamos responder a todas as vossas questões, todas as incertezas, todas as dúvidas que possam ter e nós que nada temos a esconder vos possamos responder francamente, lealmente, como devemos encarar sempre todos aqueles que em nós confiaram a partir do 25 de Abril.”
Locutora – Foi assim há 25 anos. o engenheiro Manuel Begonha foi um dos homens da dinamização cultural e nesta última intervenção começa por falar do papel da Marinha no Movimento das Forças Armadas.
Manuel Begonha - A Marinha é evidente que pela sua vocação de estar nos navios, embora tivesse fuzileiros, que colaboraram desde a primeira hora nas campanhas. Devo dizer, não só os fuzileiros como os pára-quedistas e os comando s que já referi sempre colaboraram em todas as campanhas que foi necessário e mostraram muito interesse nisso. Mas estava-lhe a dizer a Marinha tem muito menos efectivos do que o Exército e é um ramo vocacionado para andar no mar. Portanto é natural que em termos de visibilidade, em termos de Forças Armadas o Exército tenha o predomínio, mas isso não quer dizer que a Marinha, em termos de organização, aglutinava à volta do Clube Militar Naval não tivesse tido uma enorme actividade que preparou os seus elemento para o 25 de Abril. Há pouco tempo tivemos várias comemorações disso desde 1968, pelo menos esta nova geração mais ligada ao 25 de Abril, para não falar das tradições democráticas da Marinha de muito para trás que se reunia no Ateneu Comercial, depois passou-se a reunir no Clube Militar Naval e as pessoas estavam perfeitamente organizadas e enfim politizadas e com uma base cultural suficiente. Mesmo que isso não fosse suficiente, devemos dizer que, embora os milicianos na Marinha tivessem menos peso do que teriam nas Forças Armadas, em geral, também tiveram a sua influência e no navio, principalmente, que é um meio muito pequeno e numa comissão que se fazia de dois anos, a tendência das pessoas era serem críticas em relação ao regime e basta que um numa câmara tenha capacidade credível de discutir e de argumentar para imediatamente as pessoas discutirem e se interessarem e isso é um ponto de partida para se começar a ler, se começar a ter uma actividade cultural e muitos navios militantes do 25 de Abril tinham rádios, emitiam internamente, tinham rádios próprios, tinham programas culturais, tinham muitos sistemas organizados que permitiam uma grande coesão.
Locutora - Tinham jornal de bordo.
Manuel Begonha - Jornal de bordo, tínhamos muitas actividades que e a própria situação no mar, porque quando o mar bate, bate em toda a gente, portanto desde o comandante ao grumete, toda a gente passa pelo mesmo enjoo.
Locutora - Torna-os solidários.
Manuel Begonha - Torna-os muito solidários, isso não há dúvida.
Locutora - Estamos a falar da dinamização cultural, todo um projecto com toda essa dimensão que afinal foi de 74 a 75.
Manuel Begonha – Exactamente. Durou precisamente um ano porque foi de Outubro de 74 a 26 de Novembro de 75.
Locutora - E muito se fez.
Manuel Begonha - Eu penso que se fez muito.
Locutora - Duas mil sessões, para mais de duas mil sessões.
Manuel Begonha - Exactamente. Em termos de sessões registadas foram mais de duas mil sessões por todo o país, portanto, quer na fase de itinerância, quer na fase depois fixa. A partir da altura em que as pessoas se começaram a fixar, esse tipo de campanha também perdeu um bocado essa premência porque a dada altura começaram os partidos políticos a formar-se porque as pessoas também não se devem esquecer que à data do 25 de Abril em Portugal, efectivamente, não havia partidos políticos. Portanto, o esclarecimento que mais tarde compete aos partidos políticos porque as Forças Armadas e a dinamização cultural, evidentemente, nunca se pretenderam substituir aos partidos políticos. A sua função foi clara, foi explicar o programa do MFA. Agora, preparar um povo para as eleições que estavam previstas para o 25 de Abril isso teria que ser com os partidos políticos. Portanto, aí o MFA e a dinamização não tinham já interesse nem fazia, realmente não era coerente estar a fazer campanhas de dinamização desse tipo numa altura em que se estavam a aproximar as eleições.
Locutora - E contactos com os partidos políticos, vocês tinham?
Manuel Begonha - Formalmente não. Não, mas é natural que todos os partidos por onde passávamos tinham os seus representantes e as pessoas apareciam e é claro que as pessoas não estavam habituadas a ver os militares tomar determinadas iniciativas. Para já constituiu uma surpresa os militares terem sido as forças activas directamente porque nós sabemos que o nosso povo também estava suficientemente organizado. Havia partidos que trabalhavam, havia clandestinidade e havia um longo e muitos mártires que tiveram a ver com o 25 de Abril e muitos familiares de militares. Portanto os militares sabem muito bem qual era a sua posição, tinham a força das armas e a força das armas resolveu o problema, mas...
Locutora - Os contactos com os partidos.
Manuel Begonha - Ah, exactamente. Não os contactos com os partidos não existiam formalmente e devo dizer-lhe que nesta...
Locutora - Mas desculpa, foram muito criticadas portanto as campanhas de dinamização cultural por estarem conotadas com um certo partido. [Manuel Begonha -Foram.] Pelo menos...
Manuel Begonha - Foi verdade, mas isso não é verdade e devo dizer-lhe que os partidos, mesmo qualquer partido que se queira referir de esquerda foram surpreendidos pela acção dos militares e portanto se pode utilizar o eufemismo andaram a reboque, nunca tentaram interferir, faziam o seu papel e outros tentaram conotar, é verdade. Mas efectivamente nenhum partido nem liderou, nem sequer inspirou. Portanto, os militares tomaram a sua acção, tinham uma acção a desenvolver e os partidos até, devo dizer-lhe, que alguns deles e na esmagadora maioria a contra gosto.
Locutora - De 74 a 75, um ano de grande trabalho, muito ficou por fazer. Vocês conseguiram um ano é muito pouco tempo.
Manuel Begonha - Não porque as pessoas funcionavam com grande idealismo. Portanto, as pessoas quando se envolveram no 25 de Abril estavam completamente dispostas a avançar com o seu projecto. Portanto, nunca se consegue fazer tudo. Se me disser nesse ano fizeram o suficiente, acho que sim. Fizemos bastante. Podia-se ter feito mais, não éramos muitos, os militares dispostos a avançar não eram muitos. As dificuldades foram algumas, mas o tempo foi curto de maneira que e também já agora lhe digo, também houve intelectuais que não concordavam. Eu tive. Vou-lhe contar uma história, que eu acho sempre piada a isto que numa reunião muito importante onde estava a fina flor da nossa intelectualidade, entrámos numas discussões de nível mais académico e perguntaram-me, fizeram determinadas comparações do antes e do depois e estavam à espera que os militares, enfim, não tivessem um nível cultural para poder responder. Eu lembro que lhes disse uma frase que isso se faria com a superação diurética da antinomia. A partir daí. Ficaram um bocado aflitos, mas depois as coisas melhoraram bastante. Está a perceber.
Locutora - Bastou falar claro para eles.
Manuel Begonha - Mas não eram todos. A maioria foi...
Locutora - Mas a maioria colaborou
Manuel Begonha - Colaborou intensamente Foi extraordinária e aproveito para lhe dizer que, por exemplo, na área musical o Carlos Paredes tinha feito um plano de aprendizagem da música para crianças genial  e que também indo ao encontro da sua pergunta anterior muita coisa ficou por fazer. Não foi possível pôr isso no terreno. Lembro-me do Carlos Paredes porque fui vê-lo há pouco tempo, está completamente esquecido, numa casa de repouso, e está semi-inconsciente. É uma situação que os portugueses não deviam esquecer. Penso que o 25 de Abril era uma oportunidade para se lembrarem não só do Carlos Paredes como daqueles que já morreram e eu aproveito também para falar num alferes que fez parte da Comissão Dinamizadora da Força Aérea, que era o Carneiro Martins, que junto ao Ramiro Correia na minha homenagem.
Locutora - Estes programas servem também para isso, para homenagear para que a memória não esqueça. Como é que foi a morte da dinamização cultural.
Manuel Begonha - A morte em termos históricos ou em termos efectivos?
Locutora - Efectivos, em termos históricos depois falamos.
Manuel Begonha - A dada altura, eu vou-lhe contar o princípio da dinamização. Fomos trabalhar para um corredor no Palácio Foz que era o único sítio que nos puseram à disposição.
Locutora - Era onde era o ex-SNI?
Manuel Begonha – Exactamente, onde era o ex-SNI e, enfim, dadas as dimensões que a dinamização tomou, entendeu-se que poderia mudar de local e passámos para o edifício que era daquela organização Grão Pará que era um edifício grande e nós estávamos num andar e o STCI estava no andar de cima. No dia 26 de Novembro fomos intimados a abandonar as instalações pelo mesmo major Jaime Neves, na altura tenente-coronel, que chefiava o grupo de Comandos.
Locutora - O mesmo que tinha iniciado.
Manuel Begonha - Mas os tempos foram diferentes, não quero entrar aí. Há um ano, passou muita coisa. [Locutora - As pessoas mudam.] As pessoas podem fazer as suas opções e é legítimo e eu penso que sou realmente amigo do Jaime Neves e não [Locutora - Não vamos entrar por aí.] E só quero, só me interessa apreciar o comportamento do Batalhão de Comandos na campanha a que ele se associou na Dinamização. Mas a verdade foi essa. Portanto, foi fechada, nós tínhamos um espólio enorme de relatórios e elementos recolhidos em todo o país.
Locutora - E onde é que estão?
Manuel Begonha - Não sei onde é que estão. Foram extintos. Foi constituída uma comissão para extinção do espólio do MFA. Quero também aqui ressaltar o trabalho muito importante do nosso colaborador que foi o Vespeira que fez os símbolos do MFA e o Rodrigo de Freitas que foi um homem que ao nível das artes plásticas teve um papel, ultrapassou a parte das artes plásticas e começou a tomar também conta desse espólio e tentou salvá-lo na medida do possível, mas houve muita coisa que se perdeu.
Locutora - Nalgum lado tem que estar...
Manuel Begonha - Nalgum lado tem que estar e em termos sociológicos e em termos de interesse nacional eu penso que é um espólio que tinha muito interesse.
Locutora - E nunca procurou saber onde é que estaria esse espólio?
Manuel Begonha - Não porque na altura os militares ligados ao 25 de Abril quando se deu o 25 de Novembro alguns foram presos, outros foram postos à margem, é uma coisa que as pessoas também parece que se estão a esquecer e só muito mais tarde é que voltaram, os que voltaram às Forças Armadas.
Locutora - Fica aqui desde já para quem nos oiça onde é que estará esse espólio. [Manuel Begonha - Exactamente.] que também faz parte da nossa história, mas falar portanto ao dia 26 de Novembro de 1975, quando foi extinta quando foi ocupada a 5ª Divisão, à frente o operacional era o Jaime Neves, mas quem é que deu a ordem para ele avançar. Donde vieram as ordens?
Manuel Begonha - Essas ordens vieram da hierarquia, as Forças Armadas trabalham com a sua própria hierarquia. Portanto, naturalmente que o chefe operacional dos Comandos foi com certeza quem deu a ordem. Não posso precisar, não me lembro quem foi, mas as coisas seguiram a sequência normal da hierarquia.
Locutora - Não foi difícil para si chegar ao dia 26 de Novembro e ver portanto militares tão empenhados tiveram na preparação do golpe militar e na sua concretização, não digo inimigos mas em campos opostos.
Manuel Begonha - Foi, é evidente que foi, mas eu também lhe devo dizer que em situações de revolução as pessoas devem ter a grandeza de espírito para perceber que há vencedores e há vencidos e eu admiro e respeito as pessoas que são coerentes. Portanto, eu tinha uma determinada ideia para o país, tinha uma determinada ideia para o 25 de Abril, mas admito que haja pessoas que tivessem outra e portanto eu continuo amigo da maior parte dos camaradas oficiais que tiveram a ver com o 25 de Abril, com o 25 de Novembro e com aquilo que se seguiu, aqueles que foram sérios, aqueles que não conspiraram contra o país e aqueles que não enveredaram por caminhos indignos. Portanto, é essa a minha resposta.
Locutora - Mas das vossas campanhas de dinamização cultural chegaram a ir alguma vez a África.
Manuel Begonha - Não. Tivemos em combinação alguma deslocação a África, mas as Forças Armadas em África também estavam organizadas em gabinetes de dinamização, principalmente do Exército. Lembro-me, por exemplo, muitos dos que vieram para cá como o major Pezarat Correia que veio direito de África ter connosco e depois foi para o gabinete de dinamização do Exército. Havia também organização também perfeitamente. Não nos mesmos termos porque o país estava em guerra e não se podia fazer uma campanha de dinamização num país com as características de Angola ou Moçambique ou qualquer dos outros, mas os militares que lá estavam, estavam perfeitamente conscientes da situação.
Locutora - Engenheiro Begonha, falámos da morte física da dinamização cultural que foi a ocupação da 5ª Divisão e a morte histórica quando é que começa.
Manuel Begonha - Bom, eu penso que a morte histórica teve uma fase antes e teve uma fase depois. A fase de antes foi a observação da luta pelo poder. Ficou claro a partir de dada altura que as situações se iriam complicar e como eu já lhe disse nós notávamos isso com muita clareza porque a partir de uma dada altura a dinamização era visitada por gente todo o mundo, com os mais variados pretextos.
Locutora - Porque era uma ideia original?
Manuel Begonha - Havia várias coisas que confundiam as pessoas. Havia dois tipos de visitantes. Vou-lhe contar isto, não é anedota. Na Europa constituíram-se circuitos turísticos para vir ver o Portugal da revolução. Portanto, era uma coisa que espantou um bocado as pessoas e dentro desse circuito que nós a dada altura começámos a interpretar isso um bocado como folclore, vinham falar com os militares que coordenavam a Comissão Dinamizadora Central porque ainda sinceramente achavam que era uma coisa fora do comum. Primeiro estarem militares a desempenhar aquele tipo de função, segundo um militar tradicional que as pessoas vêem com aquele ar latino-americano que faz as revoluções que mata meio mundo e anda aos tiros, faziam uma revolução em que estavam acima de tudo preocupados com o aspecto cultural, com o aspecto dumas eleições, não quererem de maneira nenhuma ficar no poder, querer sim que as pessoas votassem livremente e em consciência. Portanto, isso fazia com que muitos turistas, gente nova vinda de toda a Europa permanentemente visitassem em grupo e perguntassem. Era um interesse realmente excepcional. Depois havia os profissionais. Nós fomos visitados por praticamente todas as televisões do mundo. Entrevistas em directo. Aquilo era uma situação um bocado ridícula porque faziam traduções simultâneas pelos próprios, aquilo atingiu umas proporções um bocado estranhas e depois pelos profissionais das agências de informação, as forças de segurança secretas de muitos países.
Locutora - Quer dizer, eles não se deviam dar a conhecer, mas...
Manuel Begonha - Não davam. Vinham com o papel com os mais espantosos disfarces desde jornalistas a escritores que estavam a escrever um livro, revolucionários que portanto procuravam obter informação, principalmente, perceber qual era a formação política dos militares e qual a sua formação cultural e quem eram os militares. É evidente que nós éramos bastante inexperientes, mas havia sinais claros que aquilo era um bocado farsa e as pessoas percebiam que as intenções não era tão genuínas, nem tão interessadas como isso. Havia por ali outras coisas e portanto as repostas seriam em conformidade.
Locutora - Engenheiro Begonha, 25 anos depois. Claro que valeu a pena.
Manuel Begonha - Valeu, valeu a pena e devo dizer-lhe a mim pessoalmente e a todas as pessoas que trabalharam connosco devo ter sido o momento mais exaltante das nossas vidas porque realmente vivia-se num ambiente de grande fraternidade, de grande amizade e as pessoas acreditaram de facto, as pessoas acreditaram e nós estávamos convencidos que íamos ter um país diferente.
Locutora - Este país em que vivemos corresponde àquilo por que se bateu há 25 anos?
Manuel Begonha - Depois de tudo o que se passou eu acho que sim. Acho que sim porque passaram 25 anos. Isto é as leis da física. Sabe que o pêndulo andou muito para um lado, depois andou muito para outro, está a estabilizar. Eu sou democrata, penso que os militares são democratas e o que nós prezamos acima de tudo é a liberdade e muitos dos nossos camaradas que honestamente se envolveram na revolução não tinham outra ambição que eram as ideias da revolução francesa que para um país fascista era extraordinário. Liberdade, igualdade, fraternidade era o que as pessoas pensavam. Depois as coisas evoluíram, outras liberdades, outras fraternidades, mas ao fim e ao cabo, pensando bem no lugar onde estamos inseridos e a situação de luta que as pessoas não deixam de a ter, temos os partidos organizados, temos a maneira de exprimir a nossa vontade, temos o voto, penso que a democracia neste momento possível neste momento em Portugal é esta. Se nós pensarmos na tais questões geopolíticas e geoestratégicas era difícil outro caminho. Penso eu passado este tempo.
Com o engenheiro Manuel Begonha recordámos a dinamização cultural.
Fizeram este programa, Esmeralda Serrano, Maria dos Anjos Pinheiro e Fernando Humberto.

(Programa gravado da Antena 2 no dia 2 de Abril de 1999)
 
Transcrição : Irineu Batista