O nascimento do Movimento das Forças Armadas e o fim da Era salazarista

    
Ricardo Vergueira 
  
 
 
O nascimento do Movimento das Forças Armadas e o fim da Era salazarista


            “Tia Aurora segue Estados Unidos da América, 25, 03, 00, um abraço prima Antónia.” Assim que este telegrama codificado chega às bases operacionais do Movimento das Forças Armadas, tem início a revolução do dia 25 de abril de 1974.
“O que interessava na mensagem eram os números 25, 03 e 00, que significavam o dia e o horário (três da manhã) do golpe”, conta o coronel Vasco Lourenço, um dos principais capitães envolvidos na conspiração, e atualmente presidente da Associação 25 de abril em Lisboa.
O “Estados Unidos da América”, citado no telegrama, segundo Lourenço não significava nada além de outra estratégia do Movimento para despistar suspeitas por parte do governo marcelista. “Entre os vôos que sairiam de Portugal naquele dia, havia um que partiria para os Estados Unidos exatamente às três da manhã, horário em que ia começar o golpe”, lembra.
Mas antes que as tropas insurgentes marchassem pelas ruas de Lisboa, um breve mas tortuoso caminho marcou o nascimento do Movimento das Forças Armadas (MFA), inicialmente chamado de o Movimento dos Capitães.
Em meados dos anos 50, Portugal começava a sentir os problemas decorrentes da instabilidade política e social em suas colônias ultramarinas, que passaram a organizar movimentos pró-independência. Os anos seguem, a guerra recrudesce e o regime salazarista defende o envio de mais tropas.
Com o recrutamento de mais soldados, inclusive de milicianos (jovens em idade de prestar o serviço militar obrigatório), a sociedade portuguesa começa a questionar os motivos e os objetivos da guerra colonial, enquanto que as Forças Armadas passam a ser o alvo principal dessas críticas, já que eram consideradas pela população como o “suporte da ditadura que censurava as manifestações populares e enviava seus filhos à morte nas colônias.” A essa altura também, muitos jovens militares portugueses que estão a lutar na guerra já a questionam. Alguns oficiais, principalmente os capitães, geralmente mais próximos no convívio com as tropas, passam a compartilhar de idéias tais como: “o império português não existe” ou “o regime está se enfraquecendo.”
Piorando a situação, a 29 de junho de 1973 o Conselho de Ministros aprova o decreto-lei 353/73, em plena época de férias dos militares, transformando o curso da Academia Militar, até então considerado de nível superior, em um curso intensivo de um ano. Além disso, também permite que os novos oficiais ultrapassassem os mais antigos, colocando “à prova” a questão da antigüidade dentro das Forças Armadas.
No entanto, ao contrário do que muitos acreditam, Vasco Lourenço explica que o MFA não nasceu da oposição ao decreto 353/73. “O Movimento tem um ‘pré-nascimento’ na resposta dada à organização do Congresso dos Combatentes, realizado pelo governo no dia primeiro de junho de 1973. Esse evento pretendia reforçar os esforços de guerra, pois os ex-combatentes discursariam para os jovens militares defendendo a posição do governo, de que a solução para as colônias era militar. Então houve um grupo de oficiais, que estivera na Guiné, decidido a contestar essa idéia no Congresso, defendendo que a saída para o conflito era política e não militar. Mas esses foram boicotados”.
Segundo Lourenço, há nesse acontecimento uma situação “no mínimo caricata”: o governo promovia um congresso com ex-combatentes das colônias, vetando ao mesmo tempo a participação de muitos oficiais que lá haviam lutado várias vezes.
Como resposta esses oficiais organizam um abaixo assinado, manifestação proibida na época. A represália, por parte do governo, é considerada “pequena” e os militares opositores concluem que o “poder está fraco”. É nessa onda de contestação contra o governo de Marcelo Caetano, que àquela altura já assumira o lugar de Salazar (falecido em 1970), que o Movimento das Forças Armadas nasce efetivamente.
Contudo, três grupos com opiniões distintas passam a atuar dentro dele: o primeiro grupo contesta apenas o decreto e defende interesses profissionais (“talvez formasse a maioria”, segundo Vasco Lourenço); o segundo, por companheirismo, acompanha os passos do primeiro; os militares do terceiro grupo, além de contestarem o decreto, pretendem aproveitar a onda de protestos para derrubar o governo.
“Para nós o problema já não era o decreto, mas sim o prestígio das Forças Armadas. E que, mesmo com o fim do decreto, nós não nos calaríamos enquanto não recuperássemos esse prestígio. Com essa ‘bandeira’, e negando qualquer objetivo político, foi mais fácil arregimentar o pessoal”, opina o coronel.
Da simples contestação de caráter profissional (a questão da antigüidade e da Academia Militar) e da reivindicação pelo prestígio das Forças Armadas, o Movimento passa a ganhar os contornos de uma conspiração.
  “A sociedade já não quer a guerra e os militares estão sendo desprestigiados por darem suporte à um governo que mantém o conflito. Então concluímos que a solução para a guerra passava pela conquista da liberdade política dentro de Portugal, e que a única forma de recuperar o prestígio dos militares seria derrubando a ditadura”.
Traçado assim seu objetivo final, o MFA nomeia uma Comissão Coordenadora composta por vinte e um oficiais, sob a direção dos majores Vítor Alves (responsável pela ligação do Movimento à Marinha e à Força Aérea) e Otelo Saraiva de Carvalho (responsável pelo secretariado), e do então capitão Vasco Lourenço (responsável pela estrutura operacional e pela ligação entre os diversos setores do Movimento).
“Tínhamos uma estrutura de informação que cobria todo o Exército e ainda tínhamos ligação com alguns elementos do Movimento nas colônias. O MFA foi dividido em regiões militares (Lisboa, Centro, Norte, Sul, ilha da Madeira e Açores) com um delegado para cada uma delas”, lembra o ex-capitão.
Pertencente à unidade de Infantaria, a de maior confiança do governo, Lourenço tinha como especialidade a criptografia, portanto trabalhava na organização de toda a rede de cifragens das comunicações do Exército. A experiência foi útil também ao Movimento.
“A correspondência com esse tipo de serviço levava um carimbo dizendo que aquela carta só poderia ser aberta pelo responsável do serviço de criptografia. Nem mesmo o comandante poderia abri-la. Então eu aproveitava esse fato para mandar comunicados do Movimento para os quadros que tínhamos dentro de cada unidade. Portanto, com o carimbo, essa era a forma mais segura para trocar informações”.
Mesmo com toda a cautela empregada, algumas operações do MFA foram sendo detectadas pelo governo, o que veio a acarretar na transferência compulsória de três capitães do Movimento, entre eles Vasco Lourenço, que seria enviado para os Açores. A ordem é expedida no dia 8 de março de 1974 e já no dia seguinte, ele e um outro capitão transferido, são “seqüestrados” (manobra evidente de protesto por parte do Movimento). Quando a tensão aumenta, seus membros decidem entregá-los.
Já no dia 16 de março, um dia depois da partida de Lourenço para os Açores, o MFA se envolve na primeira tentativa de golpe de Estado, o chamado “Golpe das Caldas da Rainha”. A exoneração dos generais Costa Gomes e António de Spínola, os dois únicos oficiais superiores com os quais o Movimento “dialogava”, dá força ao “clima de levante”.
E é então da cidade de Caldas da Rainha que sai o Regimento de Infantaria 5. A comunicação interna do Movimento falha e a tropa, cujo número de soldados e material de combate são insuficientes, parte sozinha em uma marcha rumo à Lisboa. A “aventura” acaba com a prisão de dezenas de militares do RI 5, cercados no próprio quartel pelas forças do governo marcelista. A segunda tentativa, a do dia 25 de abril, é bem sucedida e entra para a história como a revolução em que não houve “banhos de sangue”.
“O que não perdôo aos fascistas foi terem feito com que eu, no dia 25 de abril, não estivesse em Lisboa, provavelmente a comandar as operações”, ressente-se o coronel Vasco Lourenço, que na altura se encontrava preso no quartel general de Ponta Delgada.
No desenrolar daquele mesmo dia, o oficial Pedro Pezarat Correia, hoje general reformado do Exército Português, cumpria missão em Angola. Como membro do MFA, foi um dos responsável pela transição política na ex-colônia. Sobre o caráter da revolução da qual fez parte, Pezarat Correia enfatiza:
"Foi toda uma situação que justificou a mudança brusca de regime. Se não fosse brusca não se fazia, pois a lógica do regime era perdurar e sobreviver. Hoje, perante a situação de Portugal e do mundo globalizado, por mais que ainda haja descontentamento, não há uma realidade que justifique uma revolução. A revolução não é o modo de se resolver os problemas dentro de um regime democrático, mas sim para resolver problemas em regimes antidemocráticos".
É ainda ele quem esclarece os objetivos finais definidos pelo MFA para o período que se iniciava, o pós-25 de abril:
"Os militares não fizeram uma revolução para depois deterem o poder e instalar um regime de autoridade e ordem. Pelo contrário, eles derrubaram uma ditadura e mostraram claramente que a intenção era devolver o poder ao povo e instaurar uma democracia".
As eleições livres para a Presidência da República e o Parlamento são então realizadas. A “Revolução dos Cravos” marca o início da implantação da chamada política dos três Dês: Democracia, Descolonização e Desenvolvimento.   
Com uma nova Constituição democrática e um Presidente da República eleito diretamente pelo povo, Portugal democratizou-se e pôde fazer a descolonização. Isto permitiu o estabelecimento de novas relações internacionais, possibilitando sua integração à Comunidade Européia.

Um convite para a revolução
O coronel Vasco Lourenço gosta de lembrar que “a revolução foi feita essencialmente por oficiais de ‘quadros intermédios’, até o nível capitão”, e que por isso, “nem os quadros subalternos e nem os soldados sabiam da conspiração”.  
Mas quem dá mesmo provas disso é o ex-furriel (posto militar entre cabo e sargento) João Gabriel da Conceição Batista, 52 anos, atual presidente da Junta de Freguesias da vila de Palmela (40 Km de Lisboa).
“Não, não sabíamos de nada do que se passava. Somente por volta das dez horas da manhã é que vim a saber o que ocorria por meio de um amigo. Cheguei em Lisboa por volta das onze horas e percebi que todos os acessos ao quartel estavam bloqueados, mas não fiquei assustado”.
Naquela época, Gabi, como é chamado, prestava o serviço militar obrigatório no Batalhão dos Caçadores 5. No dia do golpe, lembra-se da opção dada a ele e aos demais colegas furriéis:
“O capitão da unidade nos manda uma ordem para que nos reuníssemos na sala dos oficiais. Lá, encostados na parede, nos são oferecidas duas alternativas. De um lado da sala ficaria os que desejassem participar da revolução, do outro ficariam aqueles que preferissem não se envolver, permanecendo assim no quartel. Apenas um dos nossos optou por ficar, e esse não fui eu”.