Entrevista a Fernando Piteira Santos

Fernando Piteira Santos
  
 

 

Entrevista ao programa Transparências
Sábados, RDP - Antena 2, 22h 

            Desde a adolescência que fez da luta pela liberdade e pela justiça a sua principal razão de viver. Sofreu a prisão a clandestinidade e o exílio. Jornalista, escritor, pedagogo, os seus passos, pela vida, confundem-se com história da resistência à ditadura. As suas análises histórico-políticas sempre foram objecto de atenção, até mesmo dos seus adversários políticos. Não gosta de falar na primeira pessoa do singular e sem nos darmos conta tudo desemboca nas “motidivagações” da sua existência. O homem que gostaríamos de conhecer melhor escapa-se-nos porque as razões da sua existência foram, são e serão sempre as mesmas, a luta pela liberdade, pela justiça.

Pergunta (P) – Dr. Fernando Piteira Santos, conforme tínhamos combinado, sabemos muito pouco a seu respeito. Sabemos que despertou muito cedo para a política, que foi um homem que teve sempre como grande preocupação as questões com a liberdade e com a justiça. Sabemos que nasceu na Amadora. Era possível começar pelo princípio? Quais são as suas origens? Porque é que nasceu na Amadora?

Fernando Piteira Santos (FPS) – Bem, eu nasci na Amadora porque os meus pais viviam na Amadora, tinham uma casa na Amadora…e portanto, eu nasci na Amadora. O meu pai era um homem que suportou mal a evolução do país depois da Revolução de 5 de Outubro de 1910, revolução na qual ele se empenhou. O meu pai foi um dos revolucionários do 5 de Outubro, era sargento, 1ª sargento da Marinha e foi um dos assaltantes do Quartel de Marinheiros, foi carbonário, e que vem daqueles oficiais da Guarda Nacional Republicana - porque foram transferidos para a Guarda Nacional Republicana e promovidos a oficiais -  que, entrevistados por Joaquim Madureira um ano e meio após a vitória do 5 de Outubro de 1910, e que lhe pergunta – O que é que você pensa da República?, e o meu pai que era um republicano tradicional, que tinha estado preso por ocasião do regicídio, etc. disse:  - É preciso fazer uma outra República. Isso... esse clima de desencanto em relação à República não impediu que nós em casa fossemos pessoas que viram com alguma hostilidade a evolução do país após a ditadura militar, a instauração da ditadura em 1926. Eu nessa altura, 1931-33, andava no liceu, acabei o Liceu Passos Manuel em Lisboa e fui envolvido pelo convívio de camaradas, colegas do liceu que se vieram a distinguir bastante na actividade, não só política mas cultural, contra o Estado Novo. podemos dar uma precisão acerca disso, dizendo que eu fui colega, para não falar de outras pessoas, no sétimo ano de letras no Passos Manuel, do António José Saraiva e do Vasco Magalhães Vilhena. Foi por intermédio do Vasco Magalhães Vilhena que eu entrei em contacto com a Revista Seara Nova, entrei em contacto, vamos ver o que é que isto quer dizer, entrei a ser leitor da Revista Seara Nova, mas não só, comecei a frequentar a sede da Revista Seara Nova, e portanto muito novo, tive ocasião de conhecer homens como o António Sérgio, O Câmara Reis, como o Alberto Candeias, como o Manuel Mendes, como José Bacelar, enfim os homens que frequentavam assiduamente a revista Seara Nova nessa altura.

P – Dr. Piteira Santos, se estivesse de acordo ainda queria voltar um bocadinho atrás.
Há uma grande influência da sua família, nomeadamente do seu pai, digamos na construção dessa sua personalidade, já preocupado com as questões políticas e sociais, não?

FPS -  Eu não digo que tenha havido uma grande influência do meu pai do ponto de vista, digamos, da estruturação de uma mentalidade política mas sim, de uma influência no sentido de um exemplo de dedicação funcionária, que o meu pai era efectivamente. Aliás o meu pai além de ter sido depois oficial da Guarda Republicana do Exército combateu, foi daqueles republicanos que se ofereceram para combater durante a guerra de 14-18, aliás 16-18, porque nós só entrámos na guerra em 1916, e foi uma daquelas pessoas que se sentiram desiludidas com a evolução da situação portuguesa, do sidonismo e do pós sidonismo, o meu pai era muito amigo de José Carlos da Maia, do Conde Carlos da Maia e pediu a sua passagem à reserva após o 19 de Outubro.

P – Mas desculpe tê-lo interrompido. Citou alguns nomes nesses seus contactos a partir do grupo se podemos chamar assim, da Seara Nova, Manuel Mendes, Sérgio, etc.. Nesse grupo de intelectuais, homens de pensamento, como é que eram as relações? Havia unanimidade de pontos de vistas…?

FPS – Bem, repare, eu quando conheci António Sérgio, Manuel Mendes, e Câmara Reis, e com…, pela mão, digamos, ou na companhia de Magalhães Vilhena, fui pelas primeiras vezes à Seara Nova, eu tinha, digamos, dezassete anos. Eu acabei o curso do liceu muito cedo, entrei na faculdade de direito muito cedo, e enfim comecei a fazer essa vida de convívio, digamos de convívio antifascista, e na faculdade fui convidado para entrar em organizações clandestinas, imediatamente. Eu tinha dezoito anos era da direcção do Bloco Académico Antifascista , e membro do Socorro Vermelho Internacional. Em 1938, em fins de 1937, fui convidado para entrar para o Partido Comunista, convite que me foi dirigido directamente por dois membros da direcção, por um que foi o intermediário, que não há inconveniente dizer Francisco Paula de Oliveira (Pavel) e Firmiano Cansado Gonçalves, e em consequência de uma crítica que eu tinha feito a um documento do Partido relativo à política de Frente Popular. Portanto, eu estive, enfim, no cerne do movimento antifascista, com menos de vinte anos. Fui preso com vinte anos, em 1938, fui julgado, fui condenado. Fui julgado no tribunal militar especial com um décor especialíssimo, soldados fardados, de baioneta calada, apresentando armas a um incrível coronel Mouzinho de Albuquerque que passava as noites a jogar nos Casinos de Espinho e da Póvoa e depois ia condenar as pessoas ao Porto. Eu fui julgado no Porto.

P – Porquê Sr. Doutor?

FPS – Justamente porque o meu pai se movimentou nesse sentido para que eu não estivesse tanto tempo em prisão, sob prisão, à espera de julgamento e eu fui…, e eu fui, de facto, julgado no Porto. Fui condenado a quinze meses de prisão e voltei pouco tempo depois. Enfim, tudo se passa rapidamente sobretudo quando se tem 20, 21 anos.

P- O Sr. Doutor esteve preso aonde?

FPS -  Estive preso – onde é que estive preso? 

P – Sim…

FPS - Estive preso na esquadra de Alcântara, no Aljube, estive preso, na prisão da PIDE no Porto, isto de uma vez. Doutras vezes estive preso também em Caxias e em Peniche.

P – Portanto o Sr. doutor ainda não estava na faculdade quando teve a sua primeira prisão?

FPS – Já estava na Faculdade de Direito e é em consequência da  minha primeira prisão que eu desisti do curso de direito. Desisti do curso de direito porque nesse ano, logo que voltei à faculdade - eu tinha feito o primeiro ano, tinha feito razoavelmente…, tinha feito bem o primeiro ano de direito - mas no segundo ano de direito, enfim, eu percebi, que  com o prof. Marcelo Caetano eu não teria nenhuma espécie de sucesso. Mas, efectivamente, desisti em plenas provas dada a maneira como ele me estava a interrogar.

P – Depois transferiu-se para História.

FPS - Muito mais tarde transferi-me para a Faculdade de Letras onde me licenciei depois em história e filosofia.

P – Sr. Doutor, como é que era o ambiente antifascista nesse seu tempo de faculdade? Fazem-se muitas referências a períodos mais recentes, nomeadamente as crises académicas de 62 e 68…

FPS – Fazem-se por uma amnésia... Eu penso que a primeira grande crise académica foi a crise de 1940…

P - Em plena guerra, portanto…

FPS – O problema não foi a guerra, foi a política de aumento de propinas do ministro Mário de Figueiredo que levou a que houvesse em Lisboa uma grande reacção -  não só em Lisboa mas eu conheço - mal o que se passou em Coimbra e no Porto - mas em Lisboa houve uma reacção impetuosa, com grandes manifestações de rua e confrontos com a polícia, com trocas de granadas de gás lacrimogénias. Estando nós encurralados na Faculdade de Ciências, as granadas lacrimogénias chegavam ao chão deitando um pequeno fumacho, nós agarrávamos nelas e atirávamo-las cá para fora 

P –Devolviam à procedência…
 
FPS - …. de maneira que os polícias também choraram.

P – Mas portanto, com eu dizia, falava-se pouco disso hoje. 
Havia uma grande consciência política, na juventude nomeadamente universitária do seu tempo, neste caso?

FPS – Em 1936 a primeira manifestação de rua em que eu participei em Lisboa foi provocada  pelo sucesso da Frente Popular em Espanha e houve uma manifestação, na vitória da Frente Popular em Espanha nós fomos apresentar cumprimentos às autoridades diplomáticas espanholas. Fomos à Casa de Espanha que era na rua do Salitre e viemos à Embaixada de Espanha aqui… onde é hoje.

P - Na Praça de Espanha…

FPS – Além disso tínhamos feito uma manifestação Rua Antero de Quental, no Jardim da Estrela e tínhamos desfilado desde o Jardim da Estrela até ao Chiado foi enfim, perfeitamente imprudente, quando passávamos já perto da Igreja dos Mártires, entre a Igreja da Encarnação e a Igreja dos Mártires, a polícia veio lá do Governo Civil por uma e outra rua, Rua Anchieta e pela anterior…
P -  Rua Ivens.
FPS – … não a anterior, a rua aonde funcionava o Governo Civil e, enfim, deu uma tareia muito grande naquela estudantada toda, que não éramos muitos, não, seriamos uma centena a uma centena e meia.

P – Portanto estamos em 1940.

FPS – Sim devíamos estar em 1940… para falar de quê?

P – Estávamos a falar das crises académicas. Nessa altura o Sr. Doutor estava em História.

FPS – Nessa altura estou a na Faculdade de Letras…

P – Para fazer histórico-filosóficas. Depois?

FPS - Depois em 1942 entre 1942 a 1944 eu estou na clandestinidade.

P – Como é que era viver na clandestinidade nessa altura? O Sr. Doutor estava ligado ao Partido Comunista nessa altura?

FPS -  Eu era membro da direcção do Partido Comunista e funcionário do Partido Comunista nessa altura.

P – Como é que era viver na clandestinidade nessa altura

FPS – Era uma coisa extremamente dura, nessa altura. Porque repare, o clandestino não tinha acesso ao recenseamento, ao racionamento, desculpe, de maneira que, na clandestinidade passava-se grandes dificuldades para obter meios de vida e sobretudo de alimentação. Era muito difícil, tinha que se viver da solidariedade dos trabalhadores que por sua vez também tinham uma vida difícil, o que sobretudo, aqui na zona Lisboa, a situação de alimentação era muito difícil…

P – Ainda hoje é…não é?

FPS – Sim mas não, nada que se compare…

P- Claro…

FSP -  ….ao facto de quatro pessoas terem um quarto de pão para viver! Enfim, não vale a pena dramatizar as coisas…

P – Foi aqui, se não é indiscrição, nesta zona de Lisboa, que o Sr. Doutor esteve?

FPS – Sim, eu posso lhe dizer, até porque há alguma curiosidade, que durante cerca de um ano vivi clandestinamente em D. Maria

P – Em.. em D. Maria?

FPS – Sim! (risos)

P- A célebre D. Maria 

FPS – Sim, esta célebre D. Maria

P -  …que não tem esgotos nem água canalizada…

FPS – Já não tinha nessa altura, mas enfim era uma pacífica aldeia de camponeses.

P – O Sr. doutor andava disfarçado?

FPS – Andava disfarçado relativamente.

P – Sei lá… deixou crescer a barba? 

FPS – Não deixei crescer barba nenhuma! Deixei crescer um bigodito, andava de chapéu, usava,  - nessa altura as pessoas ainda andavam de chapéu, o chapéu, enfim, dava um ar um bocado diferente à pessoa, - chapéu, boné; vínhamos para cidade a pé ou de bicicleta.

P – Como é que ocupava o seu tempo? No trabalho político?

FPS -  No trabalho políti… de ligação: escrever, ler, estudar, ter contactos com pessoas, passar dias em reuniões, convocar reuniões, controlar organizações de base. Controlei as organizações do partido desde aqui nesta zona até Torres Vedras até Caldas da Rainha.

P – Hum.. hum!. Mas, Sr. Doutor, sinceramente, não era minha intenção abordar muito as questões de índole partidária, mas o Sr. Doutor mantém-se no partido Comunista até quando?

FPS -  Mantive-me no Partido Comunista até … 1950 ou por aí…

P – Já nessa altura havia contactos com o actual secretário geral do partido Comunista o Dr. Álvaro Cunhal?

FPS - Havia contactos… como?

P – Quer dizer, teve relacionamentos, de ordem partidária, com o dr. Cunhal, nessa altura?

FPS – Isso mesmo antes de eu entrar para o Partido.

P – Sim, pois…

FPS – Havia. Conheci o Álvaro Cunhal quando ele era aluno do terceiro ou quarto ano da Faculdade de Direito e eu entrei para o primeiro ano. Foi aí que eu o conheci.

P – Como é que foram as suas relações, se é que…

FPS – Eu tive como o Álvaro Cunhal, sobretudo no período de 1939 40, relações muito estreitas. Repare que tanto eu como Álvaro Cunhal fizemos parte do grupo, ele nessa altura teve várias prisões, várias períodos de clandestinidade, viveu no estrangeiro, voltou para Portugal, voltou ao curso, etc… e em 1939- 40 quando um grupo de pessoas, que nem todos eram militantes do Partido, mas muito perto do ponto de vista ideológico, tomaram conta do jornal O Diabo, que tinha sido criado pelo jornalista Augusto Inês e tinha tido como directores homens como Rodrigues Lapa, como Ferreira de Castro. Nós constituímos um grupo que decidiu procurar o proprietário de O Diabo, que era um homem que tinha feito a sua vida como caixeiro-viajante e que, portanto, ligado ao comércio, mas que era um homem de tendência anarco-sindicalista, Horácio Vida Cunha, que simpatizava connosco e que nos abriu, de facto, as portas de O Diabo. O jornal estava a cair ele e confiou, apostou, num grupo de gente extremamente muito nova. Esse grupo era constituído fundamentalmente por Jorge Domingues, Mário Dionísio, o Jorge Domingues já morreu, o Mário Dionísio, o Humberto Morgado o Guilherme Morgado, o José Santa Ritta que foi depois para Moçambique, radicou-se e não voltou, Alves Redol, Manuel da Fonseca, o Cunhal, eu e outras pessoas, Armando Guerra, que acabou por ser juíz e, que mantivemos o jornal até ser extinto, até ser sufocado pela Censura. Repare que nessa altura,  havia problemas políticos muito graves, tinha havido muitas prisões, havia falta de confiança nos organismos clandestinos dadas a frequência e a inexplicabilidade da. dos sucessos da PIDE, e sucedeu que parte da actividade política que se fez, até de orientação política geral, fez-se através de O Diabo. Foi no Diabo que Álvaro Cunhal publicou três artigos que são discutíveis hoje mas que nesse momento exprimiam a opinião que nós éramos capazes de formular politicamente, que são os artigos “ Nem
Maginaud nem Siegefried”, dessa linha, dizendo que, o que se dizia em boletins clandestinos, que perante a guerra imperialista não havia que tomar posição. Isso hoje é discutível, dada a evolução de então para cá das coisas, a visão crítica do pacto germano-soviético etc… põe problemas complicados em relação à valorização global da linha política dessa época.

P- Dizia o Sr. Doutor que nesse anos 40 a sua relação com Álvaro Cunhal foi extremamente intensa, pelos motivos que acabou de expli … se não é indiscrição, hoje continuam a falar-se, porque, enfim, estão distanciados politicamente, não é?

FPS  - Se nos encontrarmos falamos, mas não temos relações seguidas. Não há nenhuma sequência de relações.

P -  Oh senhor doutor… um mais …

FPS – Mas se nos encontramos, falamos, falamos!

P- Claro. Um pouco mais de política, duas questões completamente diferentes: primeiro o sr. doutor é uma pessoa extremamente bem posicionada para falar de Oliveira Salazar. A esta distância, diz-se que até historicamente é preciso deixar passar algum tempo para podermos analisar as coisas. Sr. Doutor, é possível muito rapidamente dar-me a sua opinião sobre Salazar?

FPS – Bem eu já não sei bem mas creio que uma vez escrevi. Eu à vezes confundo um pouco aquilo escrevo com aquilo que digo, como durante anos na Faculdade de Letras de Lisboa, fiz… fiz  aulas sobre história contemporânea de Portugal e particularmente dirigi um seminário, conduzi um seminário sobre as origens do fascismo em Portugal.

P- O fascismo em Portugal?

FPS – Sim.

P – Há muita gente, enfim, que põe em causa  - “Não, houve um regime ditatorial. Mas fascismo não, e tal….” Na sua opinião…

FPS – Se não se importa já vamos…

P – Ok, tudo bem.

FPS – Já vamos. Creio que escrevi, ou afirmei, creio que escrevi, algum dia isto: que Salazar era um conservador e Marcelo Caetano era um reaccionário. Isto, enfim, a versão…. Normalmente, associa-se a palavra e a imagem do Prof. Marcelo Caetano a uma liberalização do regime, mas esquece-se que Marcelo Caetano foi colaborador, que começou a colaborar com Salazar, começou a colaborar logo com Salazar, Ministro das Finanças, foi auditor do ministério das Finanças, era um homem que era director da revista Ordem Nova que era uma revista antidemocrática antiliberal, anti, anti, anti era toda uma ladainha de antis que corporizava uma ideologia perfeitamente ultramontana. Salazar era um homem, seminarista, que não se sentiu vocacionado para o sacerdócio, que acabado o curso do seminário e passou a ser perfeito no seminário, que tinha tendência sentimental monárquica, e fez, uns versinhos ou, enfim, falou da bandeira azul e branca. Mas tudo isso não quer dizer que ele não tenha sido um homem sempre, que,… aberto a esta ideia que era difícil consolidar o Estado Novo, que sagrasse a evolução no sentido da institucionalização da monarquia. Podemos dizer que ele foi um óbice a isso que foi preconizado por várias pessoas importantes do regime. E o Salazar era de facto um conservador, um homem estreitamente ligado à Igreja, um homem que defendendo a política do centro católico, ou que ele preconizava como do centro católico, foi dirigente da… Associação Portu…-Democracia Cristã de Coimbra, da Associação Democracia Cristã de Coimbra. Ele preconizava que devia-se seguir a voz do Roma e que se nos enganássemos Roma mandaria novas instruções, esclarecer-nos-ia outra vez. Portanto, era um homem extremamente ligado…, cruel, frio. A frase dos safanões é característica, é característica. Ele recusava-se a conhecer a verdade e quando conhecia a verdade passava por cima dela. Em todos os casos de repressão ele…, a polícia despachava directamente com Salazar. Mas não há dúvida nenhuma que não se pode deixar de considerar que era um homem inteligente, que era um homem que sabia escrever português. Um português discutível na mediada em que ele… - é um português que oscila entre a atracção do António Vieira e a lição do Manuel Bernardes - , mas todavia não se pode dizer que o Salazar era um tipo inferior, não é? Agora que foi um tipo prejudicial para este país, foi! Deixou-nos isolados, atrasados, desorientados e, colocou-nos alguns problemas que eram, possivelmente, perfeitamente evitáveis. A República… Em primeiro lugar não havia em 1926 o descalabro financeiro que os homens do Estado Novo vieram dizer que…
 
P – Serviram-se disso…

FPS - … vinham salvar a Pátria. Esse descalabro financeiro não existia. Se a política de Vitorino Guimarães e a política de Marques Guedes tivessem sido levadas às últimas consequências e designadamente quando o último governo do constitucionalismo republicano, o Governo de António Maria da Silva, como ministro das finanças o prof. Armando Matos Viegas -  é o mesmo nome mas é o pai do actual ex-presidente do Tribunal Constitucional e o actual de uma coisas qualquer do Descobrimentos, não sei o que é… -  Salazar cometeu o erro de reduzir toda a administração do Estado a esse equilíbrio, ao equilíbrio financeiro, atrasando o desenvolvimento do país e, por outro lado, introduzindo também as regras do equilíbrio financeiro na política colonial. Mas não só, cometendo erro nisso - sob a influência de um homem que o foi o verdadeiro mestre de Salazar, que foi político, foi o mestre político de Salazar, o Quirino Avelino de Jesus- como por outro lado adoptando também as ideias de Avelino de Jesus, do ponto de vista político, em relação à administração colonial, que resultou num documento que é prévio à Constituição, que é o Acto Constitucional de 1930 que rompe com a tradição colonial da República. Nós temos que reconhecer que o colonialismo não é um fruto do Estado Novo e não é um fruto de Salazar, mas enquanto que o colonialismo republicano, e basta falar de homens que foram governadores coloniais como Brito Camacho, Vicente Ferreira, Norton de Matos, se orientava no sentido de elevar as populações a um nível de civilização, criar condições para que fossem povos adultos e portanto encaminhando com toda a contestação e com todas as demoras para um situação possivelmente análoga à que se verificou em relação ao império inglês e ao império francês, que descolonizaram pelo menos 

P- .. vinte anos antes…

FPS - …vinte anos antes e com uma grande predominância de descolonizações quase pacíficas, esqueçamos a Argélia, esqueçamos… nós criámos aquela situação que conduziu à guerra colonial e que foi uma situação, de facto, desastrosa. A guerra colonial foi um traumatismo gravíssimo, ainda hoje é um traumatismo que  não está sanado quer nas suas consequências em relação aos chamados … “retornados”  que têm uma posição digamos, contestatária em relação ao quadro democrático vigente, quer em relação aos soldados e combatentes da guerra colonial que ficaram traumatizados…

P – Mas comparativamente, e apesar de tudo a situação de descolonização portuguesa comparativamente à descolonização francesa na Argélia, ainda hoje os chamado “retornados” os chamados “pieds noir”, em França, ainda praticamente não estão assimilados pela sociedade francesa, e nesse aspecto, os portugueses conseguiram que…

FPS – Considero que, com todos os problemas que prevalecem, os problemas que estão resolvidos ou quase resolvidos, representam um imenso sucesso da democracia portuguesa. 

P – Sr. Doutor é chegada a altura de fazermos uma pausa musical se estivesse de acordo. Gostávamos de saber, aliás o Sr. Doutor fala muito de tudo o que anda à volta da história o que, porque isso lhe está na massa do sangue. É um historiador, é um professor de história mas temos que fazer uma pausa musical…

FPS – Olhe, e já que fala de história, porque não ouvirmos a Ode à alegria que o historiador Jaime Cortesão solicitou, por disposição testamentária, que fosse tocada na cerimónia fúnebre do seu funeral.

[Interlúdio musical: Ode à alegria]

P – Voltemos ao diálogo, sr. Doutor…

FPS -  Se não se importa e não é para me escusar para qualquer pergunta que, intencional…, mas fez-me uma pergunta a que eu não queria deixar de responder.

P . Era  sobre o fascismo, exacto. Houve ou não fascismo em Portugal?

FPS – Pois é…

P- … na sua análise

FPS – Na minha análise em Portugal houve fascismo. A ideia de que o nosso fascismo era um fascismo sui generis 

P- … de punhos de renda, como se fosse possível!

FPS – Os punhos de rendas, sui generis …. Punhos de renda não teve. Os nossos brandos costumes não impediram a existência do Tarrafal, não impediram a existência das torturas, não impediram a existência das mortes, das mortes, não …. Como sabe isto das mortes nas mãos da polícia é sempre discutível, se as mortes ocorrem ou se foram preparadas. E em alguns casos foram preparadas. A morte, por exemplo, do médico, que foi membro dirigente do Partido Comunista Português, António Carlos Ferreira Soares, que foi morto na sua casa perto de Nogueira ali na zona de Espinho, 

P – Dias Coelho foi assassinado em plena rua, pela PIDE…

FPS – Sim, mas digamos, podemos pensar que sim, Dias Coelho, Alfredo da Assunção Diniz. Há mortes que são de facto criminosas. Presos houve que foram mortos durante sessões de tortura. Presos houve, que apareceram mortos, em circunstâncias perfeitamente suspeitas, nas celas. É o caso de  Manuel Ferreira Tomé ou de Ferreira Marquês. Houve mortos que foram mortos com tal pressa que é verdadeiramente extraordinária a raiva, a truculência a brutalidade da polícia. É o caso de um trabalhador de Alcântara de um operário de Alcântara, Almeida Martins que foi preso e que, nesse mesmo dia, entrou morto no hospital, não é? Os números na ficha dele encontrada na PIDE, vê-se perfeitamente que é  verdade aquilo que se dizia: que ele que tinha sido morto imediatamente. Evidentemente eu não tenho fixada uma lista de mortos, mas foram dezenas de pessoas que foram mortas a tiro, ou em virtude de espancamentos e torturas na polícia política.

P – Portanto esses números que o Sr. Doutor acaba de nos contar de cidadãos perfeitamente identificados, isso é fundamental para dizer que esse regime era um regime fascista.

FPS – Não. O que é fundamental para dizer que o regime era um regime fascistas são outras razões, e um regime pode ser violento – podem-se cometer actos de violência num regime democrático – o que há é que na democracia há meios de contestar esses actos, de exigir a sua punição, de os divulgar, de os trazer a público. Ora a criminalidade do regime verificava-se não só pela sua política de violência como pela sua política de silêncio. Ora o que caracteriza…, nem é também a censura que caracteriza o regime fascista. O que caracteriza  o regime fascista é a natureza do poder político.

P – Partido único?

FPS – Ham.. partido único, não existência das regras básicas de formação da vontade política, a existência de um partido único, a interdição da vida, da constituição e da vida de outras organizações políticas e a natureza de classe do regime. Efectivamente o regime era uma ditadura que era exercida a favor de… dos monopolista, dos latifundiários, das camadas plutoc.. as camadas mais densas, mais fortes da plutocracia portuguesa. Diz-se, em geral, que aqueles que não negam a existência do fascismo, mas que contestam a sua virulência – dizem que era sistema, especial, porque era um sistema, de… fascista mas sem movimento fascista. Efectivamente, o fascismo em Portugal é gerado, digamos assim, nos quadros do regime da ditadura milita. Ele não é um movimento que suba ao poder como sucedeu em Itália, como sucedeu na Alemanha. Digamos que quando nós falamos das nossas fontes de inspiração do regime totalitário salazarista temos que ter em conta os vizinhos, a ditadura de Primo de Rivera. No fundo, se nós lermos a imprensa portuguesa nos anos  de.. que precedem o 28 de Maio, portanto os anos passados em 1926 desde 1924, nós vemos que o exemplo de Primo de Rivera, a ditadura militar ordeira. E é depois nesse quadro de ditadura militar ordeira que se processa a estruturação do movimento fascista. Mas, repare a ironia das coisas, é que, em grande parte o fascismo em Portugal, do ponto de vista da organização – o hino nacional etc…

P – A Mocidade Portuguesa, a Legião…

FPS – … é criado contra o movimento nacional sindicalista. No fundo Salazar part… adopta muitas das ideias desse totalitarismo folclórico do Rolão Preto para evitar e legitimar a própria dissolução e actividade contra o nacional sindicalismo, de Rolão Preto.

P – Já sabemos que o Dr. Piteira Santos andou sempre a conspirar contra essa situação que se vivia em Portugal. Mas, seria possível dizer, para além dessas conspirações silenciosas, da clandestinidade, dos contactos, do seu trabalho político, há um acontecimento em 1961, a chamada Revolta de Beja, onde o sr. está embrenhado. Neste espaço, porque, se bem me recordo ficámos ali pelos anos quarenta a falar de si e agora estivemos a falar enfim, de situações políticas do nosso país, entre quarenta e sessenta houve alguma conspiração em que o sr. Doutor tenha estado envolvido e que, enfim, tenha passado um pouco despercebida nos dias de hoje, já que sabemos que em 61 esteve metido na chamada “Intentona de Beja” e que leva, aliás, a partir daí ao seu exílio, à sua fuga…?

FPS – Bem quarenta sessenta…

P- … são muitos anos…

FPS – são muitos anos. Em primeiro lugar, repare…

P – Mas houve, por exemplo tentativas, de derrube de Salazar em que o Sr. doutor tenha estado envolvido, nessa altura?

FPS – Tentativas de derrube de Salazar…

P – O que não era fácil…

FPS – Não, não. Era fácil! Não era fácil mas foi sempre

P - …Lembremo-nos da cadeira

FPS – …foi sempre, foi sempre uma actividade constante, uma perspectiva constante. Mas houve sempre para a minha geração e, dadas as pessoas com quem eu… estive mais… intimamente relacionado, toda a nossa formação marxista, nós associámos sempre actividade ilegal e actividade legal conciliando sempre os problemas de organização, e se quiser, os problemas de conspiração com os problemas de actividade cultural e de influenciar o país. Por exemplo, logo na Faculdade, eu, na Faculdade de Letras e depois desse período de O Diabo, etc… fui companheiro de homens como Joel Serrão, Rui Grácio, Joaquim Barradas de Carvalho, e muito outros, como Coimbra Martins e designadamente, e o próprio Mário Soares, que era mais novo do que eu mas que ainda , que ainda, andou na faculdade na altura em que eu me licenciei, -  porque voltei-me, estive outra vez preso e voltei-me a licen… voltei para fazer a licenciatura - , nós tínhamos uma actividade cultural. O extinto Diabo, o Diabo foi proibido, nós continuámos bastante a ter colaboração numa série de revistas, a revista Vértice, Sol Nascente, tínhamos uma actividade cultural intensa no país. E na própria faculdade nós soubemos organizar aquilo a que eu posso chamar o “contra ensino”. No fundo, houve uma geração, que… que , nessa altura uma das pessoas que também era activa na esquerda, era, o contestado, director da Torre do Tombo de hoje, Jorge de Macedo que era um homem de esquerda nessa altura, e nós tínhamos, dado que éramos bons alunos, tínhamos uma grande influência na Faculdade e praticamente na Faculdade apreendia-se tanto dentro das aulas como …

P – Fora delas…

FPS - Fora delas. Eu tinha, tínhamos professores, enfim, para não citar muitos, ou para não citar outros, como o Prof. Vieira de Almeida, que eram democratas, homens livres, de uma grande finura intelectual e que evidentemente nos davam contraponto crítico. Depois,… depois eu trabalhei em editoriais, na Editorial Seara Nova, eh… na editorial publicações Europa- América, trabalhei na organização da Enciclopédia Cosmos, na Enciclopédia, desculpe, Focus, fiz traduções, escrevi em muitos jornais, colaborei assiduamente, por exemplo, no jornal República, onde fiz várias secções, secções que foram de combate na altura das …das épocas de campanha eleitoral, participei em todas essas campanhas eleitorais. Já fora do Partido Comunista engrenei com outros amigos que tinham sido também afastados do Partido Comunistas, como Francisco Ramos da Costa, e o próprio Mário Soares, engrenei numa actividade clandestina, muito fechada  que… que é chamada a Resistência Republicana, que publicou várias…, várias folhas corridas, vários panfletos que fizeram na época muito sucesso. Por exemplo, a seguir ao Congresso, ao vigésimo Congresso do Partido Comunista da União Soviética, fizemos uma imitação do discurso que foi feito, que teria sido feito no Congresso da União Nacional, pelo Marcelo Caetano com o Salazar morto, de certo modo antevendo que o sucessor seria o Marcelo Caetano, e dando à formulação todo o ar de um rapport Krutchev  onde os crimes de Salazar, as violências de Salazar apareciam com o Marcelo a dizê-los, e outros papéis, um papel, um panfleto por exemplo sobre o Ortiz Bettencourt e o Tenreiro, e um papel que se intitulou  a Honra Servir o Estado Novo, sobre os salários da Função Pública, etc… que…

P – Sim… mas, mas  o 31 de Dezembro de 1961, em Beja a intentona…

FPS- Sim.. vem na sequência de outras actividades. Em primeiro lugar, nós estivemos relacionados directamente com algumas actividades conspirativas, por exemplo, Teófilo Carvalho dos Santos, José Magalhães Godinho que eram da Resistência Republicana, o Barradas de Carvalho que foi sempre do Partido Comunista, em ligações com o general Godinho. Foi o Barradas de Carvalho que trouxe o general Godinho para a conspiração. Tivemos uma actividade com, relacionada com o brigadeiro Miguel dos Santos, aliás num livro que o José Magalhães Godinho vai publicar, vai ser lançado na segunda-feira, vem isso tudo referido, e depois constituímos à volta do Azevedo Gomes e do Jaime Cortesão e António Sérgio, mas sobretudo Jaime Cortesão e Azevedo Gomes constituímos o grupo que fez o Programa para a Democratização da República que se destinava a comemorar, em 1960, o cinquentenário da República. Com o Programa Para a Democratização da República fomos todos presos, todos presos. Eu fui dos últimos a ser preso porque por acaso estive no Algarve e não sei se a polícia não determinou, ou se pensou que eu pudesse estar no Algarve a fazer coisas mais complicadas. Andaram-me a perseguir no Algarve, mas deixaram-me sair do Algarve, - vigiaram-me e andaram de automóvel atrás de mim - mas deixaram-me sair do Algarve sem me prenderem. Depois soube que eu fui aqui a um casamento e os fotógrafo, outra actividade da PIDE, fotógrafos de banquetes e fotógrafos de casamento, eles souberam que eu tinha estado num determinado dia no Castelo de São Jorge. Passados quatro ou cinco dias foram a minha casa. E, bem, lá fui preso, fui preso dias depois. E entretanto, eles prendiam-me por eu ser da… um dos signatários do Programa para a Democratização da República, mas eu fazia parte de uma outra organização clandestina, que era uma organização extremamente secreta que era a Junta Patriótica de Libertação Nacional, que desenvolveu um movimento de Juntas pelo país. E, quando eu saio, a polícia não me tocou na existência da Junta interrogou-me só acerca do Programa para a Democratização da República. Saí da prisão na noite em que encerrava a campanha eleitoral de 1961, em Novembro, para deputados, e no dia seguinte eu estava na conferência de imprensa em que se explicava porque é não se ia às eleições dada a farsa eleitoral, dadas as condições de farsa eleitoral. Um dos oradores dessa sessão foi o João Varela Gomes, e começámos a ter, logo, a estabelecer logo ali… conversámos, e evidentemente fui eu - estava em contacto com aqueles homens, com o principal delegado enviado do general Delgado  a Portugal, Manuel Serras(s) - , fui eu que os pus em contacto que estabeleci  um…, ajudei a estabelecer um pacto entre os militares ligado ao grupo Tribuna Militar, que era uma das organizações militares, digamos, relacionada com a Junta patriótica de Libertação Nacional e enfim ajudei a coordenar esses esforços, essas actividades. Havia três ou quatro grupos dispersos que depois conjugaram para essa, esse Assalto a Beja, que foi feito, um pouco à margem, das organizações que existiam, nesse momento, em Portugal.

P – Mas o objectivo, Sr, Doutor, qual era? Tentar sublevar também os outros quartéis, digamos pressão militar…?

FPS – Sim, hoje não há inconveniente me dizer que..

P – Aquele era digamos, o principal, o primeiro rastilho e que…

FPS - … que o grupo da Tribuna Militar tinha relações, que publicava a Tribuna Militar, tinha relações com muitos oficiais, e muitos, e que tinha ligações com muitas unidades.
Isto é, somente o grupo que foi com o Varela Gomes a Beja eram os oficiais da organização da  Administração Militar, o actual coronel.. – olhe agora não me lembra o nome  - Oliveira, Eugénio Oliveira o actual coronel Manuel Figueiredo Marques homens que não eram de unidades combatentes. Os homens que eram de unidades combatentes e que estavam relacionados com os acontecimentos de Beja, esses não foram a Beja, e ficaram a aguardar a notícia do êxito da Beja, do êxito isto é, do êxito operacional do ataque ao quartel, para se movimentarem.

P – Muito bem. Sr. Dr. está chegada  altura de fazermos outro intervalo musical e o que é que propunha, agora?

FPS – Olhe eu propunha, e antes que caia inteiramente em desuso, que ouvíssemos enfim, a canção mais expressiva destes anos, a Grândola Vila Morena.

[interlúdio muiscal: Grândola Vila Morena]

P -  Se estivesse de acordo, enfim falemos agora do cidadão. Ainda queria voltar a 1961. É  a partir desta altura, da “Intentona de Beja” que o sr. Doutor não tem outra alternativa senão exilar-se.

FPS – Bem eu a partir de Beja…, a polícia procurou-me dois dias depois. Eu tive o cuidado, nessa noite, do dia 1 de Janeiro, de ter ido dormir fora de Lisboa, mas depois, no dia 2 de Janeiro, vim cumprir uma coisa que eu tinha obrigação de fazer. Eu era, nessa altura, tesoureiro da Sociedade Portuguesa de Escritores e vim fechar as contas. E estive todo o dia fechado na Sociedade, na sede da Sociedade até…., porque já não fui a casa. Dormi fora de Lisboa e não voltei a casa. Só a minha mulher é que sabia que eu estava ali, a fechar as contas e deixei as contas fechadas. Havia assembleia geral passados dias. Sucede que o meu amigo…, a Polícia foi procurar-me, e a minha mulher teve possibilidade de prevenir o meu amigo Francisco Salgado Zenha, que me foi levar a notícia de que a polícia tinha ido a minha casa, à Sociedade, que é na Rua da Escola Politécnica. 
P – Claro…
FPS - … a sede foi (mais tarde)  assaltada e devastada. Saí daí e fui para casa de um amigo. Consegui estabelecer um esquema de três residências pelas quais circulava e estive seis meses entre Lisboa, e trinta e tal quilómetros de Lisboa mas vindo a Lisboa, estabelecendo fios, reatando coisas, e tal... Mas a certa altura aí chegámos aos acontecimentos, a Maio. Maio houve um 1º de Maio muito poderoso, 
P – Muito intenso…

FPS – Houve prisões. Sucedeu que uma das pessoas em que eu me apoiava que era um homem, um corajoso homem vendedor ambulante, resolveu desarmar um sub-chefe da polícia. Foi preso mas ele sabia onde eu estava, e isso complicou um bocado as circunstâncias e embora ele não tenha dito uma palavra, eu é que não tinha razão nenhuma para não tomar medidas de defesa, e pensei na minha saída de Portugal. Saí, de facto, de Portugal por barco, enfim, do tomei um barco no Algarve e fiz uma viagem bastante difícil dado o pequ… a pequ…, a exiguidade do barco, até Tânger. De Tânger. Entrei em Tânger, clandestinamente, com mais dois amigos. De Tânger fui para Rabat e em Rabat estabeleci contacto com os Movimentos de Libertação das Colónia Portuguesas que me deram um apoio junto das autoridades argelinas, um primeiro apoio. Estive clandestinamente sempre, sempre em Rabat e, repare, o destino tem ironias extraordinárias, eu estava clandestino em Marrocos mas havia uma autoridade marroquina que sabia da minha presença e sabia donde eu estava. Porque eu tinha nessa altura  relações, militares, com um dos dirigentes de um dos movimentos de libertação de um dos movimentos de libertação de uma colónia portuguesa, que era o coronel Afkir, esse homem que… tenebroso não é? Pois bem eu tive nas mãos do coronel Afkir digamos, até se ter… até que amigos meus estabeleceram contactos em França e, designadamente eu fui recomendado ao Ministro dos Negócios Estrangeiros de Marrocos. Marrocos deu-me um title.. titre de voyage que me permitia, não me permitia coisa nenhuma, senão regressar a França, ir a França em péssimas condições, ou, o que eu preferi, fazer a viagem pela Argélia. Fui convidado para ir a Argélia, assistir às cerimónias, à primeira cerimónia da independência, portanto em Novembro, em Novembro de 1962 e estive cerca de vinte dias na Argélia. Da Argélia fui..…

P – Lá viveu doze anos…

FPS – Não. Estive vinte e tal dias na Argélia, fui recebido pelo presidente Ben Bella, com quem estabeleci as relações necessárias e suficientes para que, depois, o primeiro português que se estabeleceu politicamente na Argélia tivesse chegado a levar uma carta minha a Ben Bella. Esse primeiro português foi o engenheiro Tito de Morais. Eu estive depois em Paris dois ou três meses e em Fevereiro de 63 regressei á Argélia. Não estive sempre na Argélia até 74, circulei por vários países do leste do oeste, com bastante dificuldades, tanto mais que fui expulso de França sem nunca ter residido em França, ou por outra, fui expulso de França sem nunca as autoridades francesas me terem…

P- reconhecido …

FPS – Não… me nunca me terem dado conhecimento da minha residência em França. 

P – Pois.

FPS - Fui expulso de França por exigência do governo português que, enfim… Como os portugueses que viviam nessa altura, frequ.., passeava no centro de Paris. Depois, a partir de determinada altura, fui muitas vezes a França, estive meses em França, mas nunca mais passei no Boulvard Saint Michel, nunca mais fui ao Boulevard Saint Germaint, andei sempre na periferia de Paris, nos bairros e nas ruas onde vivem os franceses. 
Mas é uma anedota com o seu pitoresco: eu, fui trocado por uma perna ou um braço de George Bideau. Isto é a França foi… aliciada por uma combinação do governo português. Isto é a França, Portugal não recebia o George Bideau, que nessa altura estava ligado à OAS e essas coisas…  e éramos expulsos de França quatro pessoas: eu, o engenheiro Tito de Morais, o Marcelino dos Santos e creio que o Pedro Ramos de Almeida. Nessa altura creio que o Pedro Ramos de Almeida estava já na Tchecoslováquia, o Marcelino dos Santos estava em Rabat e o Tito de Morais e eu não tínhamos residência em Paris. Mas como tínhamos sempre vivido e sido localizados em Paris, em todo o lado, então a França recebeu garantias em relação ao George Bideau dando a garantia de que nos tinha posto fora de França.

P – Sr. Doutor, o nosso tempo chegou ao fim, esta vida tão agitada desde a adolescência até aos dias de hoje, porque mesmo depois do 25 de Abril, o Sr. Doutor teve intervenção política, nomeadamente na comunicação social, na Faculdade em colóquios. Já alguma vez pensou o que é foi esta sua vida agitada de clandestinidade, de lutas políticas de exílio?

FPS – Nunca tive a ideia de escrever memórias ou de fazer um balanço do que foi a minha vida. Podia-lhe dizer, mas é uma banalidade, que tudo vale a pena, quando esse- não é só se alma não é pequena,- mas se o que se faz corresponde a uma convicção, corresponde a um sentido de intervenção na vida do país, corresponde ao desejo de deixar a nossa presença neste destino que é a vida com todas as suas incerteza e todas as suas perplexidades, deixar impresso a nossa vontade, o nosso pensamento, os nossos desejos, as nossas ansiedades. Eu não estou arrependido do que fiz, não estou arrependido da minha vida, não sei se voltaria a repetir os mesmos passos – não sou tão orgulhoso da vida vivida mas o que lhe garanto é que não tenho nada a lamentar, não tenho contas a fazer com o meu país. Servi o meu país como me foi possível.

 

Transparências: Transparências, o desfiar de memórias, de vidas repletas de vida. Quinzenalmente, aos sábados, na Antena 2  a partir das 22 horas.
O nosso convidado de hoje foi o Dr. Fernando Piteira Santos. A Assistência técnica foi de António Pereira, a realização de Vítor Norte.
Voltamos daqui a quinze dias. Boa noite.


[Transcrição do programa emitido em 12 de Março de 1992, realizada por Maria Natércia Coimbra]