Uma estranha viagem

L. A. & Cª no meio da revolução

 Cap 12  UMA ESTRANHA VIAGEM 
 
 Conforme tinham combinado na véspera, encontraram-se às oito horas em ponto, com um lanche reforçado para o que desse e viesse, e trazendo todo o dinheiro das suas economias. 
 O Filipe apareceu muito pálido. Percebia-se pela sua cara que pouco tinha dormido, mas fizera um esforço de memória, e vestira-se com roupa igual à que o irmão trazia na véspera. Sabia-se lá o que iria ainda acontecer! Pelo sim pelo não ... 
 - Trouxeram tudo? Não se esqueceram de nada? - perguntou a Ana. 
 - Vamos fazer alguma expedição ao Polo Norte ou quê? 
 - É verdade, só vamos a Lisboa e logo, voltamos os quatro, nada mais! E só faltamos um dia à escola, Ana! Escusas de olhar para mim com essa cara de má! - dizia o Filipe, muito sério. 
 - Parece que és parvo! Vamos ou não vamos libertar o teu irmão? - a voz da Ana tinha um tom de censura. 
 Mal chegaram à estação só tiveram tempo para comprar, à pressa, os bilhetes e apanhar um combóio que se preparava já para partir. 
 - Que sorte tivemos! 
 - Onde nos vamos sentar? 
 - Parece que temos o comboio por nossa conta! 
 - Mas que estranho! Tantos lugares vazios numa carruagem de segunda! 
 Sentaram-se enquanto o comboio arrancava. No banco ao lado, um casal de meia idade cochichava. 
 - Luís! Não achas que as pessoas estão com uma cara esquisita? - segredou Ana. 
 Noutro banco, ao fundo da carruagem, meia dúzia de passageiros agrupavam-se à volta de um pequeno transistor. 
 De repente, a senhora que ia no banco do lado, inclinou-se na direcção deles: 
 - Os vossos pais não vos deviam ter deixado vir a Lisboa hoje! 
 - Nós já estamos habituados a vir sozinhos - respondeu o Luís, muito educado. 
 - Mesmo assim - insistia a senhora - se eu fosse à vossa mãe tinha-vos acompanhado ... 
 - Os nossos pais têm de trabalhar e nós já somos bastante crescidos! - retorquiu a Ana, repontona. 
 Quando o comboio abrandou viram, com alívio, que estavam em Santa Apolónia e que o casal se levantava, cheio de pressa. 
 - Então, boa sorte! Tenham muito cuidado! - despediram-se os dois, com uma insistência intrigante. 
 - Irra! Estes velhotes parece que são bruxos! - resmungou o Filipe mal os viu desaparecer. 
 - Se calhar está escrito na nossa cara! - e Ana lançou um olhar inquisidor ao vidro da janela, demasiado sujo e embaciado para a poder tranquilizar. 
 Saíram cá para fora. Na rua não se via ninguém. E nem sinal de eléctricos! 
 - Ora bem, Belém fica ao pé do rio, portanto, se seguirmos sempre ao lado do rio acabamos por lá ir ter! - disse o Luís. 
 - Claro! Mas afinal o que é que se está a passar? 
 - É estranho, parece uma cidade abandonada ... Mete medo! 
 Mas depressa tiveram a certeza de que qualquer coisa muito estranha estava a acontecer. Mal chegaram ao Terreiro do Paço sentiram-se rodeados por uma quantidade de soldados  que os impediram de ir em frente. Formavam um grosso cordão à entrada da Praça e era imenso o burburinho e a agitação. 
 - Vamos pelas ruas dos lados! São paralelas ao rio, por isso vamos lá dar na mesma! - gritou o Luís, esforçando-se por aparentar uma calma que não sentia. 
  Aos outros dois parecia-lhes que estavam a viver um sonho. As ruas estreitinhas por onde passavam  agora, que costumavam fervilhar de comércio e de gente, estavam completamente desertas e não se via uma loja aberta. 
 Chegaram ao Cais do Sodré. 
 - Olha, afinal ainda há eléctricos nesta terra!  
 - E gente a passar! 
 - E o mercado está aberto! 
 - E não há sinais de soldados! Mas afinal o que é que está a acontecer? 
 - Adormecemos e tivemos os três o mesmo sonho! 
 - Que disparate! Eram soldados de carne e osso e nós estamos os três bem acordados!  

Tomaram um eléctrico que dizia: "Belém". Parecia-lhes que tinham saído de um sonho para a vida real porque os lisboetas aparentavam o ar apressado de todos os dias, transportavam os sacos de compras de sempre, as poucas lojas que havia na avenida estavam abertas e até o movimento dos carros era quase normal. 
 Saíram do eléctrico precisamente em frente à casa dos Pastéis de Belém. 
 - Ai que fome que eu tenho! - e a Ana olhou de soslaio para a loja.
 - Todos temos fome! Afinal já pouco falta para o meio dia! 
 - Eu acho é que não temos tempo a perder - comandou de novo o Luís. - Vamo-nos sentar ali, naquele banco, e comemos as sanduíches que trouxemos de casa, enquanto consultamos de novo o mapa. 
 - Estamos muito perto do tal Largo, não estamos? E se fôssemos já para lá? 
 - Não achas que, se comermos primeiro, estamos mais fortes para aguentarmos o que nos espera?! 
 À pressa, enguliram os pães com queijo e fiambre. Apesar de estarem muito esgotados por tantos acontecimentos, não se sentiam cansados. O nervoso e a excitação  suplantavam tudo. 
 "Estou de certeza a sonhar com um filme de aventuras", pensava Ana. "Vou acordar de repente e rir-me de todas estas loucuras" 
 - Olha, olha, o Largo do Galvão fica aqui pertíssimo! - o Filipe seguia o percurso, com o dedo, no mapa que tinham aberto em cima do banco. - Chegamos num instante! 
 - Então vamos! - disse a Ana, sem coragem para confessar aos outros que estava com um certo medo. 
 Subiram umas ruazinhas a pique e foram dar ao Largo. 
 O coração do Filipe parecia um tambor a querer saltar-lhe do peito. 
 O Largo do Galvão era um largo com uma forma esquisitíssima; não era redondo nem quadrado; parecia mais um triângulo muito irregular, bicudo e em declive na direcção do rio. As casas tinham uma aparência modesta; pareciam antigas casas de pescadores. A maior parte delas estavam muito velhas e maltratadas. Pintado num armazém, podia ainda ler-se em grandes letras: "Vinhos e Tabacos" e noutro "Carvão e Petróleo". Parecia que o tempo tinha ali recuado pelo menos uns cinquenta anos. 
 - Alto lá! - exclamou o Luís. - Mas aqui não há uma única casa que tenha mais de dois andares! 
 - Parece que tens razão - respondeu-lhe a meia voz, o Filipe, do outro lado do Largo. 
 Seguia pelo passeio, atento aos números das portas e, de repente, estacou. Tinha chegado à casa número dezoito. Era como as outras, constituída por rés do chão e primeiro andar. As janelas do andar de cima estavam abertas e tinham cobertores e lençóis a arejar. A uma delas assomou uma rapariguita que se pôs a berrar para outra que subia o Largo ajoujada com uma saca de compras: 
 - A mãe disse para vires depressa senão hoje não há almoço cá em casa! 
 "Meu Deus", pensou Ana, não sem sentir um certo alívio. "É evidente que nos enganámos! E agora? Onde estará o Filipe?"

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