Coleções - Legislação - Spínola reconhece o direito das colónias à independência (27/7/74)

SPÍNOLA RECONHECE O DIREITO DAS COLÓNIAS À INDEPENDÊNCIA

(27/7/74)

Se há hora grande na vida e na história de um Povo, essa é sem dúvida, a do seu reencontro com a vocação, a fisionomia e a forma de ser e de estar no mundo que lhe são próprias. Portugal vive hoje essa hora grande; e é com a mais viva emoção que dirijo ao Povo português de aquém e além-mar, na mais perfeita coerência com a nossa tradição histórica e com o ideário que nos preside e nela se inspirou, a declaração formal de haver chegado o momento de reconhecer às populações dos nossos territórios ultramarinos o direito de tomarem em suas mãos os próprios destinos, concretizando-se, desse modo, o desenvolvimento da política de autenticidade que sempre defendemos.
Somos um povo essencialmente pacífico que através dos tempos sempre buscou na aventura o suprimento das suas carências. Ontem, como hoje, foi a procura em terra alheia de uma vida melhor que motivou os Portugueses na demanda de novos mundos. E se os sucessivos modelos políticos da história do mundo permitiram uma configuração imperial da nossa superstrutura, não poderá daí de forma alguma concluir-se termos sido, em algum tempo, um povo de vocação imperialista. Bastaria para tanto recordar que, exactamente quando as fronteiras de África eram talhadas à mesa das conferências europeias pelos impérios coloniais recém-desaparecidos, já entre nós se levantavam as vozes dos soldados de África defendendo as teses da autêntica emancipação colonial. Teses que, surgidas com o liberalismo, reformuladas nos últimos anos da Monarquia e retomadas na vigência da I República, traduziam a essência de uma política ultramarina legitimada pelo consenso moral e tornada autêntica pela prática constante do humanismo lusíada.
A fatalidade histórica de nos termos desviado desse curso, e a facilidade com que, sob o antigo regime, se legislava sem oposição, permitiram que a Pátria viesse a ser definida em mero estatuto legal, esquecendo-se que se não limitam nações como se limitam coutadas.
Pagámos esses erros com o sofrimento ao longo de treze anos de uma guerra cujas perspectivas oportuna e persistentemente denunciei. Se na altura em que a questão ultramarina se agudizou, no começo da década de sessenta, houve que evitar o genocídio e criar as condições para uma solução política, esse esforço militar acabou por perder todo o sentido, na medida em que não foi convenientemente acompanhado no plano político, em ordem a restituir o problema ao quadro dos seus verdadeiros factores. E assim se foi prolongando uma situação sem base ética, que levou os militares que naquele esforço se empenharam, com alto sentido da verdadeira dimensão da Pátria e de fidelidade à causa da justiça, a marcar desassombradamente a posição que culminou com a arrancada de 25 de Abril.
Nesta linha de coerência, e na estrita fidelidade ao Programa do Movimento das Forças Armadas, se anunciaram recentemente os princípios programáticos do nosso processo de descolonização. Processo a que nos vinculámos sem alienação da responsabilidade moral contraída para com as populações ultramarinas, responsabilidade tantas vezes incompreendida e criminosamente explorada por quantos não conhecem ou procuram ignorar toda a extensão das nossas honestas intenções, buscando apenas o fruto de uma popularidade fácil.
Aliás, compreende-se que treze anos de guerra no clima de uma política caracterizada pela carência de autenticidade tenham conduzido a posições de irreconciliação, que estão na base do ambiente de desconfiança criado. Houve, portanto, que atentar nas características específicas do actual contexto sociopolítico e que acelerar o início do processo formal de descolonização, embora sem prejuízo do seu natural processamento no plano prático das nossas responsabilidades de apoio técnico, económico, financeiro e cultural. Temos de reconhecer que, em tal clima, outra solução mais ortodoxa e formalista, poderia ser considerada atitude paternalista e contraditória dos princípios que propugnamos. Os povos africanos, como muitas vezes afirmei, são perfeitamente capazes de, por si sós, se institucionalizarem politicamente e de defenderem a sua própria liberdade. E, nesta linha política, impõe-se-nos, coerentemente, remover a última barreira: o enquadramento legal da descolonização.
A Lei constitucional n.° 7/74, decretada pelo Conselho de Estado, e ontem promulgada, cria o quadro de legitimidade constitucional necessário para que se dê imediatamente início ao processo dei descolonização do ultramar português. Assim, e na mais perfeita coerência com a linha de acção do meu governo na Guiné, chegou o momento de o Presidente da República reiterar solenemente o reconhecimento do direito dos povos dos territórios ultramarinos portugueses à autodeterminação, incluindo o imediato reconhecimento do seu direito à independência.
Precisando melhor, para que não restem dúvidas sobre a importância histórica do momento e a clareza de quanto afirmamos, quer esta declaração significar que estamos prontos, a partir de agora, para iniciar o processo da transferência de poderes para as populações dos territórios ultramarinos reconhecidamente aptas para o efeito, nomeadamente a Guiné, Angola e Moçambique.
Estamos assim, e desde este instante, abertos a todas as iniciativas para o começo dos trabalhos de planificação, programação e execução do processo de descolonização, com a aceitação desde já do direito à independência política, a proclamar em termos e datas a acordar.
Será uma tarefa complexa, é certo, mas será também uma tarefa que cumpriremos com a coragem de quem não foge à responsabilidade assumida e ao respeito pela Justiça. Poderemos assim ficar no mundo de cabeça erguida; pois que ao praticarmos este acto de fidelidade ao reconhecimento do direito das gentes, celebramos afinal a mais difícil das vitórias: a vitória sobre nós próprios, sobre os nossos erros, sobre as nossas contradições.
É pois este o momento histórico por que o País, os territórios africanos e o mundo ansiavam: a paz na África Portuguesa, finalmente alcançada na justiça e na liberdade. Porque neste momento cessaram as razões dos combates, as forças de um lado e outro poderão dar-se as mãos como camaradas de armas de nações irmãs do mundo lusíada. A essas novas nações, a nascer de Portugal, cuja vocação foi a de dar mundos ao mundo, cabe-nos desejar que tudo façam para que o seu sonho se não desencante, e a liberdade, a democracia, a multirracialidade e o progresso social por que anseiam sejam uma realidade e não apenas uma motivação explorada por terceiros. Que saibam distinguir o Povo português do regime que o dominou durante meio século; que a justiça porque lutaram se reforce na dupla responsabilidade que assumem.
Portugal não enjeitará, em relação a esses novos países, as suas responsabilidades; dar-lhes-emos, na medida das nossas posses, todo o apoio de que carecerem. Portugal continuará sendo, para todo o cidadão dessas jovens nações, uma segunda Pátria, como o é já para qualquer cidadão brasileiro. Em troca, esperamos apenas continuar unidos por essa convivência sem preconceitos que faz de cada português um cidadão do mundo e pela língua em que sempre nos entendemos. Podemos sentir-nos legitimamente orgulhosos de que a sociedade internacional se enriqueça com povos livres e dignos que se afirmem, vivam, sintam e queiram à sua maneira, mas que se exprimam em língua portuguesa.
E se o momento em que o anunciamos não deixa de ter o sabor nostálgico de um princípio de separação, não poderemos esquecer que damos o mais importante dos passos ao encontro dos nossos próprios interesses, pois a solução da questão ultramarina permitirá que se devolva às tarefas da paz e do progresso todo esse caudal de potencialidades consumidas ao longo de treze anos de uma guerra sem finalidade. Esse passo é dado na altura própria; adiá-lo, seria flagrante negação de nós mesmos. Não foi fácil, porém, conservar a independência de espírito que presidiu a esta decisão. Foi preciso enfrentar corajosamente as críticas dos apressados manipuladores da opinião; e às conveniências de certos oportunistas teve de opor-se, não sem dificuldade, a clara consciência da justiça e da responsabilidade perante quantos se nos confiaram, combatendo e morrendo por outra idealização do futuro.
A quantos sonharam, honestamente, com uma África lusa, dirijo uma palavra de confiança nas novas perspectivas que se abrem, e de tranquilidade quanto à segurança da vida que construíram na terra a que também chamam sua. Nada terão a recear, pois consideramo-nos em posição de poder confortá-los com a certeza de que as autoridades dos novos países honrarão o sentido de justiça decorrente do seu estatuto de nações plurirraciais de expressão portuguesa.
Desejo expressar à Nação a mais profunda esperança nos horizontes que agora se nos abrem. Reentrámos no Mundo após um ostracismo de mais de uma década. Reentrámos com o orgulho de quem soube honrar uma tradição histórica e reintegrar-se na sociedade das nações. Possibilitamos, enfim, o quadro de pleno desenvolvimento dessa vasta comunidade espiritual e humana, a que Gilberto Freyre chamou «O mundo que o português criou».
Saiba o Povo português colher deste facto a lição que encerra. Sem alardes de comício; sem esse aviltamento da condição humana que decorre da agressão psicológica; sem as manifestações degradantes da consciência cívica através das quais o homem responsável se anula perante a multidão, cumprimos no momento próprio a nossa palavra, prosseguindo firmemente nas realizações que hão-de conduzir Portugal à democracia e à liberdade conscientemente praticadas.
Termino, formulando a todos os povos de expressão portuguesa os votos fraternos de um rápido e harmonioso desenvolvimento na paz. Que a língua comum que falamos, e quanto de bom houve em cinco séculos de convivência, sejam a garantia de que se manterão, ao longo do tempo, os laços da amizade que lhes não negaremos. E que cultivem, sem prejuízo de individualidade própria, os traços tão profundamente humanos dessa maneira lusíada de estar no mundo, que constitui a verdadeira essência do povo que nos orgulhamos de ser.
Finalmente, que nesta hora grande da história da Pátria, as nossas comuns esperanças de paz, de justiça social e de progresso continuem a ser o firme sustentáculo da nossa luta e da nossa fé num mundo melhor.
Viva Portugal!

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