Coleções - Legislação - Costa Gomes na ONU (17/10/74)

COSTA GOMES NA O. N. U.

(17/10/74)

Senhor Presidente:

Em nome do Povo português saúdo fraternamente todos os Povos do Mundo reconhecendo fazê-lo numa mui digna Assembleia cuja vocação universalista é o pólo de condensação das melhores esperanças dos que amam a Justiça e a Paz.
Saúdo Vossas Excelências, Senhor Presidente, e todos os representantes nesta Assembleia Geral em que recaem as mais transcendentes responsabilidades da História da Humanidade.
Reconhece o Mundo que, com as deficiências próprias das obras humanas, tem esta Organização procurado garantir um clima mundial de tolerância, de paz, de segurança e de justiça.
Todos os homens de talento e de génio que nesta Organização têm sabido colocar os ideais do bem e da equidade universal acima dos interesses nacionais ou regionais são marcos na rota ascensional da Dignidade Humana.
Sou o primeiro Chefe de Estado de Portugal que tem o privilégio de se dirigir à opinião pública mundial beneficiando da vantagem de o fazer aqui e perante Vossas Excelências.
O meu país tem uma história longa de mais de oito séculos e não nos será difícil perdoar a memória do último meio século orientado por homens que não souberam sintonizar os seus ideais com a alma colectiva do Povo a que pertenço.
Nas histórias de todos os povos há relâmpagos de inspiração que lançam as suas forças vivas no caminho mais nobre e mais eficaz e há golpes de cegueira política que alienam a vontade popular e lançam as pátrias em caminhos obscuros e estéreis.
Os espíritos superiores são aqueles que pairam acima dos acontecimentos historicamente fugazes e conseguem a visão global e sintética que crie uma perspectiva crítica e justa da vida dum país.

Não sou optimista ao atribuir ao Povo português um saldo histórico fecundamente positivo:

— Contribuímos decisivamente para o conceito planetário que o Homem de hoje tem de si próprio;

— Estivemos com os pioneiros bons em cuja legislação a abolição da escravatura foi mais uma conquista da ciência jurídica;

— Demonstrámos que a pobreza de recursos não impede o fenómeno fecundo duma vivência interracial que torna os povos mais irmãos e mais unidos; no Grande Espaço da expressão portuguesa, 130 milhões de pessoas respondem por esta afirmação,

- Somos um povo europeu em cuja paisagem e arte se amalgamaram influências de todos os continentes e em cujo sangue há marcas genéricas dos clãs europeus, das tribos do norte ao sul da África, da Ásia e das Américas.
 
Senhor Presidente:

Sou o Chefe de Estado dum País que, depois de humilhado por meio século de ditadura, soube iniciar na longa noite de 25 de Abril uma revolução sem sangue que outros classificaram da mais pura do século.
Estamos perfeitamente determinados a salvaguardar a pureza dos principais objectivos revolucionários:

- Devolver ao Povo português a dignidade perdida, implantando condições de vida mais justas com instituições democráticas pluralistas legitimadas na vontade do povo livremente expressa,

- Iniciar o processo irreversível e definitivo de descolonização dos territórios sob administração portuguesa. Não mais admitiremos trocar a liberdade de consciência colectiva por sonhos grandiosos de imperialismo estéril.

A nossa revolução iniciada com o «25 de Abril», apesar de embaraços e dificuldades, continua a demonstrar o alto civismo do Povo de Portugal.
Aqui deixo um convite aos altos responsáveis políticos desta Assembleia para verificarem em Portugal que o ambiente geral de tranquilo labor e de ordem social não justifica generalizações alarmistas a partir de pequenas perturbações sociais que o Governo Provisório sempre sanou e ultrapassou.
Nestas condições estou à vontade para afirmar solenemente que o Governo Português tem intenção e capacidade para cumprir, na letra e no espírito, a Carta das Nações Unidas e todos os compromissos internacionais, políticos, comerciais ou financeiros a que se encontra vinculado.
No plano interno manteremos um processo democratizante onde, com um mínimo de sofrimento, vamos desintoxicar os espíritos de meio século de propaganda de extrema-direita; construiremos um ambiente de tolerância política multipartidária; iniciaremos a politização do nosso povo e dar-lhe-emos as condições para a livre escolha do regime pluralista em que deseje viver.
No processo de descolonização manter-nos-emos fiéis aos princípios do direito internacional da autodeterminação e independência; na aplicação concreta dos princípios teremos a flexibilidade de espírito suficiente para salvaguardar os interesses dos povos a descolonizar; seremos tão dinâmicos quanto o exige a impaciência de quem toma uma tarefa com muitos anos de atraso e tão pacientes quanto indispensável à felicidade de povos que sofreram na carne a consequência da anterior situação política portuguesa. Saberemos evitar figurinos estereotipados e procurar para cada território a solução mais adequada à garantia da génese feliz de uma nova Pátria.
No plano das relações internacionais, procuraremos intensificar as relações económicas e políticas com todos os países amigos tradicionais e com todos os povos do Mundo.
Aproveitaremos as relações históricas com outros povos para desenvolver aceleradamente justas situações de interesse mútuo, incluindo os países existentes de expressão portuguesa, as novas nações irmãs em formação pelo processo de descolonização em curso, e não esquecendo os estados árabes e outros cujas raízes históricas se cruzaram com as nossas ao longo dos séculos.
As origens culturais latinas facilitar-nos-ão o reforço da solidariedade com todos os países latinos da Europa e da América.
O estádio do nosso desenvolvimento, a nossa situação geográfica, o sentimentalismo e anti-racismo congénito do nosso Povo são a garantia de uma ligação de fácil entendimento e fraterna entre ajuda com todos os povos do Terceiro Mundo.
Não mais resta o direito à sociedade internacional para anatematizar Portugal com o ferrete da suspeição ou da consideração condicionada.
Nestes termos, Portugal, no desenvolvimento de uma revolução dos espíritos, dos comportamentos e das atitudes sociais, na pacífica revolução da escala de valores que colocará em lugar justo os pobres e os desprotegidos, sente-se no direito à solidariedade e auxílio da sociedade internacional em que se integrou.
Esperamos das Nações Unidas, e suas Agências especializadas, o rápido levantamento de todos os embargos e restrições que vimos sofrendo.
A situação pré-democrática em que vivemos tem importantes dificuldades económicas e financeiras que melhor serão vencidas se os países democráticos do Mundo se dispuserem a uma solidariedade material e moral, rápida, fraterna e justa no seu preço financeiro e político. Esperamos deles essa atitude amiga.
Ao nível das preocupações internacionais, Portugal manifestou o seu profundo desejo de ver as grandes potências mais dinâmicas no caminho do desarmamento mundial e que os enormes recursos que ficariam disponíveis sejam canalizados para os países mais desfavorecidos, onde em cada Homem a luta pela sobrevivência é um drama que lhe nega o direito à cultura e ao progresso espiritual.
No seu instinto de intercontinental humanismo o Povo português considera-se irmão de todos os povos oprimidos e declara a disposição de contribuir para todas as iniciativas que visem debelar a fome no Mundo, melhor distribuir as riquezas e salvaguardar os princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Senhor Presidente:

Dentro de dias a Organização das Nações Unidas celebrará o seu vigésimo nono aniversário.
A voz dos mais fracos teve aqui uma tribuna quando a lei da força se sobrepôs à força da lei.
A voz dos oprimidos aqui lamentou a ignomínia dos opressores.
O clamor dos pobres aqui feriu a consciência dos que esbanjam em supérfluos o excesso de recursos disponíveis.
Adversários exaltados aqui descomprimiram em palavras as pseudo-razões que a opinião pública reduziu a dimensões razoáveis.
Quantas canseiras e esforços desta organização têm sido estéreis, quantos orgulhos egoístas calaram a voz da Justiça e da Razão.
Mas em larga contrapartida quantos fracos sentiram apoio, quantos oprimidos foram libertos, quantos pobres foram amparados, quantos exaltados sentiram o ridículo das suas posições apaixonadas.
O vigésimo nono aniversário abre novo capítulo de uma organização que seguramente consolida a mais transcendente instituição que o espírito humano soube criar.
A todos os que directa ou indirectamente contribuíram para a génese e funcionamento da O. N. U., a nossa gratidão por nos haverem oferecido mais um Dia Maior da Humanidade.
Vou terminar dentro de momentos, porque de nós o Mundo espera muitos esforços concretos e pouca retórica.
Saúdo os países tradicionalmente amigos nas boas e más horas do meu país.
Saúdo os países de expressão lusíada, actuais e potenciais, dos quais a humanidade espera o fortalecimento de laços comunitários fraternos e de mútuo respeito.
Saúdo todos os povos latinos, países irmãos numa cultura de cujo sentir humanístico os povos oprimidos têm o direito de esperar auxílio.
Saúdo todo o Terceiro Mundo, com a certeza da sua compreensão quando sublinho especialmente os povos irmãos da África, incluindo os povos árabes também gravados no sangue e na alma do povo a que pertenço.
Saúdo os povos africanos que, depositando inteira confiança na honestidade e sinceridade do nosso processo de descolonização, estabeleceram connosco relações diplomáticas e de amizade que muito nos sensibilizaram.
Termino saudando todos os homens bons cujas preocupações se focalizam em construir uma Humanidade melhor, mais pacífica, mais segura, mais fraterna, mais progressista.
Que cada nova geração tenha uma vida mais digna de ser vivida.
Muito obrigado Senhor Presidente!

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